21 junho 2025

# adormecer com o não, acordar com o sim


Acordo uns segundos antes das badaladas, com os sonhos colados aos olhos, o corpo dorido. Viagens e mortes — e coisas que não se dizem, só se imaginam. Uma central de comando para descodificar mensagens — coisas que já não somos capazes de fazer sozinhas. Objetos e partes de construções que estavam em órbita e começam a cair na Terra. Sangue e corpos mutilados. Um elevador. Um avião. “Estou contigo” — mas é role play. Uma casa que não é a nossa. Estamos à procura dos copos e do álcool. O nosso amigo filmou a manifestação. Vamos ver. Aparecem pessoas iguais a nós onde não estivemos. Bandeiras, por todo o lado. Há qualquer coisa “vintage” que se mantém e percorre o sonho. Aquele gosto que as coisas pareciam ter quando o futuro ainda era muito distante.

Ontem, depois do jantar no pátio, mais uma daquelas conversas em que é preciso preparar o terreno. Há palavras e expressões que já saíram do meu vocabulário, conceitos que me recuso a considerar por aquilo que carregam, por parecerem duros e serem afinal tão fracos:

— “natureza humana”.

Isto não é sobre saber mais mas sim sobre saber admitir que não sabemos assim tanto. Que partir dos conceitos “em si” não nos serve mais, que tudo quanto seja ir contra o império implica (continuar a) partir pedra aí, não desistir de pôr em causa tudo quanto tenha o sabor da totalização, da intemporalidade, da universalidade.

A pouco e pouco, vamos. Lançando, ainda assim, as nossas âncoras de vez em quando, porque ainda precisamos delas.

O meu primo interroga-se: será que alguma vez nos livraremos disto? — isto é, da linguagem enquanto sistema de abstração, do signo e do símbolo. Ele queria dizer: da mediação.

(Neste pátio só se fala de grandes questões e problemas — e que grandes conversas tínhamos com a nossa avó, que adorava sentir o anoitecer sentada nesta mesa de pedra, nos verões em que cá estava, e é a minha mãe que se lembra de a chamar, e a verdade é que nos fez companhia até ao fim da conversa).

Talvez não…, respondo ao meu primo. Mas hoje acordo com outras ideias. Outro prisma. Somos habituadas a achar que palavras são coisas que usamos para substituir as coisas que nomeiam. Mas podemos ainda falar de linguagem quando já não é preciso explicar nada? Quando podemos usar as palavras apenas para desenhar? Os conceitos, que as palavras fazem o favor de tornar circuláveis, são um meio, não um fim. Um dos meios ao nosso dispor para construir mundo — “a constituição em força de uma sensibilidade”. O projeto de fingir que “as coisas são como são” fez de tudo para ocultar a plasticidade dos conceitos, da linguagem, das palavras. Para construir uma cosmovisão dominante que irradia do centro, nas suas várias versões, obcecada com as essências.

Tendo nascido dentro da supremacia da linguagem (semântica, em particular), como se ela fosse a nossa única possibilidade de ligação ao mundo, menosprezamos (com frustração) quando, por vezes, tantas vezes, as palavras não nos satisfazem, não nos servem. É uma dependência. E não se pode dizer que esteja assim tão à mão a sabedoria dos pós-estruturalistas, na redoma que construíram à volta das mesmas palavras que tentaram escancarar. Não podendo “escapar-lhes” (às palavras, digo) por completo, nem culpá-las por fazerem aquilo que é suposto — regular distâncias — talvez, se nos empenharmos em aceder a outros modos de sentir, conhecer e comunicar… “uma disciplina da atenção”. Isto é algo que se treina e que se pode transmitir.

Talvez seja aí que começamos a “falar” por telepatia e a ver o futuro. Isto é, a ver todos os tempos agora, em vez de sentir o presente como um momento enlatado. A não duvidar da presença do que não se agarra. Aprender a confiar; ensinar o corpo (dos pés à cabeça) a escutar(-se), a deixar-se atravessar, a deixá-lo guiar-nos. 

E a pouco e pouco, quando tudo começa a ser processado enquanto fluxo, processo, relação, é aí que se começa a abrir mão — do conceito como base, do “mas isto é objetivo” quando é constructo, da ciência como verdade, do não pôr em causa os nomes. E aí a comunicação flui de outra maneira, porque deixa de ser sobre discordar e passa a ser sobre multiplicar hipóteses. Onde as palavras talvez descubram usos imprevisíveis a toda hora e já não como exceção — seremos poetas, sem por isso nos distinguirmos.


E esta mania de achar que é humano o dom de codificar... Os pássaros, que me acordam todas as manhãs, hão-de ter os seus mecanismos de interpretação para distinguir os seus cantos uns dos outros. Qualquer pessoa que estude pássaros hoje, ainda para mais se o fizer com uma certa sensibilidade (contra o império), teria muito para se rir da nossa ignorância. E dos pássaros então, nem se fala.

15 junho 2025

# por falar em medo

 

Todas percebemos o que significa, neste momento, apelar a que o medo não se torne a emoção dominante e petrificadora perante o atual estado de coisas e, em particular, os recentes episódios de agressões de grupos de extrema-direita, cuja violência se vê como cada vez mais legitimada. Mas talvez fosse pertinente questionar o medo como foco de uma demanda de mobilização geral contra o racismo, a xenofobia (e outros ismos) que, longe de serem características excecionais destes grupos, fazem parte do aparato institucional a que, ironicamente, se apela. Se sabemos do que estamos a falar quando falamos em violência sistémica, percebemos que os órgãos estatais, legais e policiais a que nos dirigimos quando reivindicamos a criminalização e a punição destes grupos, são, na verdade, agentes responsáveis na sua normalização – e assim também não nos deveria espantar que haja até uma confluência de indivíduos entre uns e outros. 

Será que exigir ao Estado que se posicione e intervenha contra esta violência terá um resultado diferente daquele que é já o seu modus operandi, a sua receita em tempos intempestivos: mais controlo, mais vigilância e mais policiamento? Não haverá milagres, nem será por magia que, de repente, as mesmas instituições criadas para proteger uma determinada ordem, uma determinada hierarquia, uma determinada relação de poderes – sendo ela classista, colonialista e patriarcal até ao tutano – vão começar a agir a favor dos interesses de quem está, realmente, nas posições mais vulneráveis à violência destes grupos na sociedade. Isto é evidente na instantânea equiparação dos “extremos” que sucede nestas situações, por parte de figuras com visibilidade mediática, completamente alucinadas, e muitas vezes sem qualquer contraditório.

Por outro lado, pensemos em conjunto: a nível retórico, não será o foco na questão do medo, desde logo, e nos termos em que ela é invocada, um rótulo de passividade espectacular? “Não queremos viver num país do medo” é uma constatação evidente que não nos desafia a nada mais do que a ter um posicionamento – e, ainda por cima, bastante vago. E não é que não seja importante que esse posicionamento se faça e se dê a conhecer de algum modo, mas não seria agora um bom momento para pôr em causa o alcance deste tipo de frases vagamente unificadoras, altamente descomprometidas e, acima de tudo, sem qualquer tipo de chamada à ação concreta que não aquela que reafirma a sua confiança nas instituições do sistema? 

Mantendo até o mesmo tipo de frase, poderemos pensar que diferença faria se o foco estivesse naquilo que queremos em vez de ser naquilo que não queremos? Num posicionamento afirmativo, ao invés de num posicionamento defensivo? Na coragem de que precisamos em vez de no medo que nos assola? Talvez aí se revelasse a necessidade de antagonizar a resistência, de entender realmente que barcos existem e que não, não estamos todas no mesmo barco… Que negar isso, na fé de uma união frentista antifascista, é adiar um embate que provavelmente se tornará inadiável, e para o qual estaremos menos preparadas quanto menos nos predispusermos a enfrentar a falência de um posicionamento defensivo, pacificador e legalista.

Não escrevo com certezas absolutas de nada, reafirmando sempre que me parece estar tudo por fazer e ainda por desfazer, neste limbo constante entre ir fazendo e pensar no que pode ser feito – coisas que acontecem a par e passo e que nos exigem força, espírito crítico, e capacidade de aprender com o passado histórico e recente, desenterrando conhecimento que nos tem sido negado, ao mesmo tempo que precisamos de desaprender tanta coisa. Parece-me, porém, que uma postura que se assume na base da negação (fator indispensável a uma ação de denúncia e reivindicação de algo que se quer contrariar, rebater, contra-atacar), mas que o faz dirigindo-se ao "poder político", não tem como não morrer na praia quando se fica por aí.

Que temos de ocupar as ruas, isso é certo. Mas continuar a fazê-lo nos parâmetros em que tem sido feito, à espera que a mudança venha de cima, contribui para prolongar uma desresponsabilização coletiva sob a ilusão de que o protesto às autoridades é suficiente. 


*


Como qualquer emoção, o medo tem uma função cognitiva de situar o nosso corpo num determinado ambiente e influenciar o modo como nos iremos movimentar nele. Lido à letra, “viver sem medo” – isto é, erradicar o medo das nossas vidas – seria como viver sem o botão psíquico e somático que se ativa quando somos confrontadas com a perceção de perigo ou insegurança.

Nesse sentido, precisamos, de facto, do medo. De saber senti-lo e de processar aquilo que nos está a mostrar, até se transformar noutra coisa. O modo como o nosso corpo responde ao medo não é igual para toda a gente nem em todas as situações. Se o medo pode ter um efeito paralisante, também pode ser a emoção que nos leva a evitar ou a fugir de uma situação potencialmente perigosa ou a gritar por socorro, a identificar o que nos assusta e como podemos sair dali em direção a um lugar seguro. Que lugar seguro será esse? A resposta não é igual para todas.

Cada vez sinto mais que, para contrariar a lógica binária no que diz respeito às emoções e à sua catalogação em positivo versus negativo, se é realmente a liberdade que nos interessa (mais uma vez, a liberdade de quem?), não é grande estratégia tentar criar um sapato que caiba a todas, quando nessa ambição universalista caímos justamente na totalização. E que falar de liberdade é menos útil do que falar em libertação, no que a isso diz respeito. Mas o comum existe. No leque das emoções que, provavelmente, estaremos a sentir coletivamente, o medo é, sem dúvida, uma delas, e com razão. Assim, trabalhar (com) a energia do medo e treinar o nosso corpo para identificar e sentir medo neste momento é importante.

Rastrear aquilo que mais nos assusta e observar as formas que o medo assume no nosso dia-a-dia. Perceber as diferenças entre os diferentes medos que sentimos, os seus tamanhos e efeitos, de onde vêm, e a sua correspondência com o nível das ameaças reais que enfrentamos e aquelas que são geradas em torno de percepções mais abstratas. Encontrar canais criativos para a sua expressão. Constatar como o medo é instrumentalizado pelo poder, aqui e em toda a parte. Procurar conhecer o(s) medo(s) dos outros, naquilo em que são parecidos e naquilo em que são distintos. Criar espaços e disponibilizar instâncias em que nos sentimos seguras e onde podemos ser acolhidas e acolher outras pessoas que também estão a senti-lo. Ou, pelo contrário, conhecendo melhor os medos dos nossos inimigos, identificar, por extensão, as suas fraquezas. Desenvolver e partilhar práticas e táticas de auto-defesa e auto-proteção, a nível individual e coletivo. 

O medo é uma emoção útil em muitas circunstâncias, inclusive agora, mas é capaz de não ser o melhor outlet para uma mobilização política de revolta e tomada de ação pública em reação àquilo que está em causa. O medo não é uma emoção propícia a um estado de espírito revolucionário, porque leva o nosso corpo a procurar a segurança e a apaziguação, o conforto e a conciliação. E honestamente, essa procura fica muito aquém daquilo que precisamos de levar para a rua neste momento. Ou seja, por um lado, isto poderia ser algo que corrobora a premissa do “não querermos viver com medo”. Por outro lado, o que estou a dizer é que não basta dizer que não queremos viver com medo – aceitando já que é sobre a rejeição dessa emoção (instalada) que operamos. 

Embora, dentro do contexto, o apelo convoque a pressuposição de outras emoções quando invocado na forma negativa – indignação, frustração, ansiedade, preocupação, entre outras – não deixa de dar destaque a todo um espectro que opera sobretudo no âmbito emocional da fragilidade – impotência, desamparo, insegurança, exposição/rejeição. É nesta premissa que facilmente resvalamos para um discurso que fantasia com uma resposta securitária, sobretudo se nos estamos a dirigir aos aparelhos institucionais. Porque não a raiva? O ódio à injustiça? Porque temos medo de assumir realmente uma frente de combate?

Mas além disso, voltando à questão dos inimigos, urge convocar uma reflexão um pouco mais exigente sobre as dinâmicas de subjetivação em jogo nestes apelos unificadores, para chegar à conclusão de que as emoções não são o melhor ponto de entrada neste tipo de convocatórias, nem tão pouco nos servirá um humanismo lato que se esquiva ao antagonismo que possa fazer frente à opressão cada vez mais latente, e nos sirva na constituição de uma luta contra a escalada do fascismo. Estes grupos de extrema direita não são uma anomalia do sistema, mas uma expressão impecável dos vários pilares que sustentam aquilo que o capitalismo está desenhado para produzir e reproduzir.

Por fim, ainda muito poderia ser dito sobre a perspetiva patriótica que o apelo assume no destaque ao “país” como lugar onde não queremos viver com medo… Independentemente de se estar a reagir a algo que está a acontecer em Portugal, sabemos bem que estamos perante um cenário que, apesar das suas variantes geográficas, só pode ser devidamente compreendido (e combatido) de uma perspetiva internacionalista, no derrubar de uma visão fronteirista e na construção de uma solidariedade que terá de se erguer contra o poder e não com ele.









 

20 maio 2025

# umas fagulhas



a forma como falas das coisas

inscreve-se materialmente

na sua forma

e consequentemente

nos seus efeitos

no seu alcance

e no seu poder de transformar


aquilo que dizes 

não se desprende do modo como o dizes

nem da voz que o molda e se projeta para fora

estás a falar de onde e para quem?

perguntas que nos esquecemos de fazer antes de abrir a boca e jorrar a tinta


esta língua não é nossa

falar é sempre citar

mas a citacionalidade é uma

espada de dois bicos

experimenta rastrear o uso das palavras que usas

enquanto descobres os outros usos que elas já prometem na possibilidade de, com elas, assaltar a própria linguagem


não há premissa ou proposição que nos valham no vácuo

daí a importância da ancoragem

a necessidade do sistema e dos códigos

a percepção de que o poder se disputa

e de que não há registo de quem tenha abdicado dele porque sim


ainda podemos confiar no diagnóstico marxista;

a camada de pó que vês é meticulosamente acumulada pela força do poder que não cede, até que tape por completo o vislumbre da revolução

a consequência de algo que se adia, a cada cedência no movimento da oposição – o destino da classe explorada num sistema de acumulação de Capital


o clichê de relembrar que radical vem de raíz: 

não te parece estranho continuar a defender os instrumentos que gerem este modo de organização social ao mesmo tempo que te surpreendes com quem cavalga essas estruturas com o pretexto de as destruir enquanto mantém intactas as relações de poder – agravando ainda mais o fosso?


das duas uma: 

defender as estruturas e as instituições da classe dominante – a Lei, a polícia, o parlamento – independentemente de quem se apropria delas (ou seja, deixar a democracia burguesa funcionar) ou, talvez, numa jogada um pouco mais comprometida com a “mudança”, se for essa que se almeja, fazer de tudo para as desmantelar – isto só pega na difusão da admissão do seu desgaste, gerando a inevitabilidade das alternativas reais


admitindo até que é possível falar bem da “estabilidade” como conceito abstrato…. para que o poder burguês se mantenha estável, mascara-se a violência que o permite

toda a instabilidade que a sustenta, e calcifica o ressentimento

a corda vai-se gastando, na ilusão do compromisso, nas táticas de burocratização das “lutas”


haja coragem para reivindicar a violência contra o poder burguês, contra o patriotismo vestido de colonialismo do bem, contra a social-democracia que se nos impõe como o máximo horizonte almejável com o seu cenário pintado

queremos enfrentar nazis antes de desnazificar o nosso próprio discurso, a nossa própria bolha?


sem poder de decisão, 

existe ainda agência para aprender a des-cindir,

– como diz a Fernanda Eugénio

a exclusão é um processo constitutivo do poder; e há mãos que é mesmo preciso largar


o projeto das democracias neoliberais ocidentais, assente como está no colonialismo, é uma muralha que fortalecemos quando não vemos que é logo aí que precisamos de partir pedra. 

sejamos nós a erva daninha a vingar sobre o bolor.


*


B Fachada em Enterrados no Jardim (2025)

Fernanda Eugénio e João Fiadeiro, "O Encontro é uma Ferida" (2012)

Maria Lis, Enclave (2024)




25 abril 2025

# a nostalgia é o travão do luto (e da luta); escutar o corpo, inteligência coletiva e outras reflexões d’abril




I.

É meia-noite no Largo do Carmo à pinha, e cantamos a Grândola. Os carros continuam a passar pelo meio do mar de corpos que enche a pequenina praça. É mesmo pequena. E os carros passam, e a multidão abre caminho para que eles passem, à razia. Um polícia sinaleiro interpela um condutor: “continue, continue, se tocar em alguém, olhe, azar, ninguém respeita”. Ninguém respeita os carros, e ainda bem que há polícias a defendê-los. A multidão entoa “o povo, unido, jamais será vencido!”. Este ano, não sou capaz de juntar a minha voz a esse coro. Quem é “o povo”?

São duas e tal da manhã. Eu e três amigos falamos sobre consentimento numa esplanada junto ao Largo. Felizmente, são homens que sabem respeitar os sinais do corpo alheio, e que acham nojento sentir prazer numa violação. Mas o consentimento tem muito mais que se lhe diga, para além do que acontece nas situações óbvias, e nas interações corpo-a-corpo, em que o corpo é realmente capaz de manifestar, mais ou menos explicitamente, que há certas coisas que não quer fazer ou que lhe façam. O modo como tratamos o nosso corpo no capitalismo é o maior exemplo de uma relação onde, constantemente, quebramos a integridade que o consentimento nos deve garantir. Estamos sempre a agir contra o corpo, as suas vontades e desejos, as suas necessidades e apelos, num registo quotidiano, contínuo. Todos os dias nos deixamos violar pelas mais opressivas expressões do poder, nas suas várias camadas muito concretas, mas nem sempre específicas ou absolutamente nítidas. O capitalismo serve-se delas tanto quanto as reafirma e perpetua, penetrando em todas as relações que temos, connosco, com os outros e todas as coisas, numa lógica de co-existência que depende da violação para se manter. Que depende de uma continuada negligência dos corpos, os nossos e os dos outros, humanos e não humanos. Talvez seja preciso começar a falar de consentimento com muito mais nuance, não no sentido de desresponsabilizar ninguém, mas no sentido de entender que o que está em causa ultrapassa a mera divisão entre abusadores e abusadas. Sobretudo porque, ao encarar a questão de uma perspetiva sistémica, rapidamente constatamos que não há soluções rápidas, imediatas ou individuais para lidar com este tipo de violência.   

E mesmo para quem fala com tantas certezas de nunca ter coagido ninguém a fazer algo que não queria, ou a deixar-se estar numa situação indesejável... Podemos realmente garantir que a pessoa com quem estamos a interagir está a consentir essa interação, se não for capaz de escutar o seu corpo? Podemos realmente confiar em nós mesmas para consentir o que quer que seja enquanto continuamos a rejeitar escutá-lo?

São 4:18 da manhã. Estou na minha cozinha a comer torradas e a beber chá, vinda da rua com um cravo na mão. Ando a fazer noitadas há uma semana e meia, estou com o horário da madrugada. Ontem, dia 24 de abril, acabei, finalmente, a tese. Esta tese de que me ouvem falar há meses (anos…), enquanto dizem “acaba lá isso!”, “é só uma tese!” — acreditem, eu sei. Mas também sei, como me disseram há tempos, que uma tese não se acaba, abandona-se.

E calma, ainda só estou na primeira fase. Ontem, escrevi a última frase. E é isso que celebro, por enquanto (ainda falta rever, submeter, defender…). É difícil de explicar esta sensação de escrever a última frase de um enorme texto que tem ocupado tanto mas tanto espaço na minha vida. Não é, como talvez possa parecer a algumas pessoas (e como eu própria, por vezes, senti), um mero empecilho no caminho que me impede de continuar a andar, ou uma tarefa que deveria ter sido cumprida há muito tempo — e este pensamento assombrou-me em vários momentos. “Isso é perfeccionismo”, “já tá bom de certeza”. Tudo bem, eu aceito que sejam aquelas coisas que se dizem, as coisas que se costumam dizer, e a melhor resposta possível aos meus disparatados momentos de desespero, angústia e incertezas, em que procurei um ombro amigo que me consolasse. Em certos momentos, apanhei-me a dizê-las a mim própria — “só quero acabar isto!” — e até escrevi, nos azulejos do meu chuveiro, “vou acabar a tese”, para me convencer de algo que parecia ser óbvio para toda a gente menos para mim. Engraçado que, perante a notícia de que acabei, tenha sido tão comum perguntarem-me “e agora?”, “e a seguir?”. Calma. Lá porque eu queria, de facto, acabar isto, não significa que esteja já pronta para passar para outra. Eu tenho noção de que isto é um sinal de privilégio (nunca o negarei), e também é esse o problema. Quem é que tem tempo para ter calma, respirar fundo entre as suas passadas, sem a ânsia da próxima senda? O pior é que, quem tem, também reproduz a mesma pressa — acima de tudo, a produtividade! Para essas, o descanso não é revolucionário, mas fonte de culpa constante.

São cinco da manhã. Não consigo não achar simbólico que o dia em que acabo de escrever a tese seja o dia 24 de abril. Mas este ano não é como os outros. Alguma coisa mudou. E é até mais por isso que é simbólico, do que pela data em si, ainda que a data ajude a reforçá-lo. Em 1974, muitas coisas mudaram, mas não foi da noite para o dia, e o fragmento celebrável daquilo que marca o fim de uma ditadura dificulta a consciência deste facto. O 25 de Abril, enquanto unidade de tempo diária, teve de alargar muito para que coubesse tudo aquilo que nele se veio a incluir. Porém, no mesmo gesto, fica de fora a consciência de um processo e de um movimento, reduzidos a uma historicização do “clímax” (o sexo masculino é, de facto, a medida para todas as coisas deste mundo). Como qualquer dia significativo na construção da narrativa histórica de uma nação colonial onde a lei burguesa impera, é claro que esta data teve de ser (e continua a ser) institucionalmente branqueada.

São dez da manhã. Assim que acordo percebo que mal me consigo mexer, quanto mais sair da cama. Dói-me o corpo todo, a garganta, a barriga, os braços, as costas. É como se o meu corpo me dissesse: “eu aguentei estes dias todos, agora é a minha vez”. O problema de ir treinando a escuta do nosso corpo é que deixamos de o conseguir ignorar, ele começa a falar bem alto. Mas é sempre uma negociação… O corpo aguenta muito, de facto, há que lhe dar esse crédito. A sobrevivência, no capitalismo, exige-nos que quebremos o nosso voto de confiança no corpo, entre muitas outras coisas.

Por muito mal que me sinta, tenho de admitir que esta é uma reação psicossomática muito legítima ao esforço e à ansiedade dos últimos tempos, em particular nesta última semana; uma descarga necessária de toda a energia que dediquei a “acabar” este pequeno monumento de quase 200 páginas, fora todas aquelas que descartei. Mas também uma espécie de luto, que espreita na ambiguidade do alívio, e que começa a bater. Eu sei, sempre a insistir na tecla do luto, mas estou há anos a pensar e a escrever sobre ele, deixem-me continuar, só mais um bocadinho.

Duas e um quarto, já percebi que este ano não desço a Avenida. Depois de dormitar mais um bocado, consegui levantar-me, mas estou de rastos. De novo na cozinha, faço outro chá, pode ser que entretanto isto melhore. Mas mais uma vez confesso, este ano sinto uma ambivalência estranha, uma vontade de sair à rua noutra direção, uma dissonância. Aparentemente, foi uma surpresa para muita gente que o nosso governo de direita tenha cancelado a sua participação nas celebrações do 25 de Abril a propósito do luto nacional declarado pela morte do Papa. As pessoas, claro, indignam-se, e saem à rua na mesma, como deve ser. Mas apressam-se, a meu ver, a dizer “mais luta, menos luto”, perdendo a oportunidade de se envolverem num discurso crítico sobre os mecanismos através dos quais o luto também é constantemente politizado, instrumentalizado para fins políticos. Quem tem e quem não tem direito a ser passível de enlutamento nacional? A incompatibilidade entre luto e celebração é reforçada por ambas as partes. Para mim, e sei que para muitas outras pessoas que se recusam a celebrar Abril sem uma certa dose de desconfiança perante as narrativas conciliatórias das “conquistas democráticas” e o mito da “revolução sem sangue”, o luto não tem como não acompanhar estes festejos. No branqueamento de Abril, passa-se pano justamente nos lugares para os quais teríamos de olhar, e que entram em conflito com a historieta do “dia inicial e limpo”. Em África. O 25 de Abril começou em África. 

É preciso perceber que este “povo unido” também não está todo a celebrar a mesma coisa. E que exaltar isso como uma das mais bonitas características das celebrações de Abril, em que diferentes classes e fações do espectro político se juntam numa só grande marcha, é a mais irónica constatação de uma revolução falhada. É que Abril de 74 não marca apenas o derrube de uma ditadura e de uma guerra colonial que se deram, não graças a uma cedência do poder, mas a quem o tomou e o obrigou a ceder. E que não haja dúvidas de que esses sejam motivos suficientes para celebrar esta data, e tudo o que trouxe. Mas Abril, é preciso relembrá-lo, sinaliza o início de um processo revolucionário que imaginou um futuro que não se cumpriu. Dizer que esta democracia foi a grande conquista de Abril é contar a história na pele do vencedor, purgando-a daquilo que poderia ter sido muito mais. A democracia que temos hoje é consequência de uma vitória, não da revolução, mas da classe burguesa que conseguiu esmagá-la, e a quem devemos estar sempre gratas pelos nossos direitos democráticos. Abril para todos? Quais todos? Se começássemos a enumerar toda a gente que fica de fora desse “todos”, torna-se difícil continuar a cantar certas lenga lengas sem um nó na garganta. E a quem está ciente disso, convém que não nos enganemos a constatar que até aqueles que apelam a que Abril se cumpra também tiveram um papel fundamental nessa derrota.

São quase cinco e meia da tarde. Estive a ouvir a mix da Rádio Sonoplasmática do Doutor Urânio, edição especial do 25 de Abril. Continuo a sentir-me um pouco estranha mas começo a pensar em sair de casa. Talvez vá à cena do Vida Justa na Voz do Operário, o meu amigo D. diz que Abril está lá, e também é lá que muitos dos meus amigos vão. Visto-me toda de preto com o cachecol vermelho e o cravo, já um pouco murcho, na alça da mala. Ontem, ao Largo do Carmo, levei o vestido da minha mãe, que ela usou no funeral do meu pai, que eu usei no funeral da minha avó, e que agora está comigo. É um vestido comprido, preto com pintinhas brancas, num tecido fino e leve. Quando eu cresci, este vestido tinha um peso muito grande, e estava sempre pendurado no armário. Agora ocorre-me que ele possa ser um vestido-para-todos-os-lutos, dos mais pequenos aos maiores, uma espécie de vestimenta celebratória de diferentes tipos de fim. É que o luto, com todo o seu peso, faz sempre parte de qualquer rito de passagem, cumprimento de uma etapa que fecha alguma coisa a que nos dedicámos e nos é importante, e nos permite continuar. Acima de tudo, talvez mais ainda do que marcar a morte, o luto celebra a vida e a transformação.

Com a sua demanda de ressignificação, o luto é uma força que nos obriga à revisão da história na perspetiva das suas perdas, e na abertura das suas brechas, e, ao mesmo tempo, o seu veículo e suporte instável, com todas as suas aporias, incertezas e turbulências. Falo de um luto que se impõe sem nostalgia, na medida em que a nostalgia talvez seja uma espécie de rasteira ao luto, o travão incapacitante da sua engrenagem. Numa cultura da nostalgia, o passado fica cristalizado, e assim também aquilo que, no presente, nos permite reenquadrá-lo, abri-lo à disputa de uma reconfiguração que imagina o futuro. Um futuro onde porventura deixamos de consentir que nos explorem e imobilizem, e em que precisamos, mais do que nunca, de nos implicar no resgate das coisas abandonadas, renegadas, violadas, interrompidas. Será também esse o gesto revelador de muitas coisas que não chegámos a enterrar.

Assim como a luta, o luto também é um trabalho constante e contínuo, exigido no tratamento de qualquer falha enquanto marca do que poderá estar a faltar; um trabalho que reformula o que falta fazer num interminável ir-fazendo. Que recusa, não apenas a contenção da revolução aos limites de uma data, como o seu constante re-adiamento.

Seis e meia em direção à Graça.

                   Abril pode ser agora, Abril tem de ser sempre.



II.
(chega de saudade)



a saudade 
dizem 
é como um selo que torna a nossa cena “especial”
supostamente
intraduzível,
dizem

mas o que é a saudade senão uma nostalgia de marca?



o dia vive-se em muitos lugares e de diferentes ângulos
meia centena de fachos (ou mais) dirige-se ao largo de São Domingos para dar na boca
invocando Salazar de bafio no bafo
mas há lá quem responda, travando a passagem
e em vez dos murros se abaterem nos corpos dos migrantes, 
a quem se destinavam,
atingem a malta que se recusa a dizer “não passarão” sem se implicar
(não estive lá mas contaram-me isto n’a Voz do Operário, com uma marca roxa debaixo do olho)

“fascismo nunca mais” é uma frase tão arrepiantemente alucinada
como estar a olhar para o que se tem à frente e dizer outra coisa nada a ver

estes fachos saudosistas
medram do quê?

ai Portugal
Portugal



quem diria que o fascismo é o presente envenenado do capitalismo liberal depois das “conquistas democráticas” começarem a esgotar-se nos espaços que não chegaram sequer a penetrar

numa sociedade em que temos de “lutar por direitos” mais valia abolir a lei
mas depois como é que o poder garantia a sua desigual distribuição?
quem é que defendia os bancos?
quem é que arquivava os casos de violência doméstica?
quem nos iria ensinar a punir e a castigar quem se porta mal, enquanto a outra mão branqueia o crime?
batemos palmas quando a lei muda a “nosso favor” e nos reconhece e nos valida como iguais
mas não, não somos iguais se é preciso esperar pelo decreto que o postula

imaginem pegar em nós e, em vez de petições e marchas, 
começássemos a brincar-juntas ao fora da lei?

o pior é que não é brincadeira nenhuma
menos ainda se os fachos já andam a organizar-se



a polícia lá decidiu intervir no final do desacato,
prendeu uns quantos
e tendo em conta o historial da instituição,
quase parece que prender fachos no “dia da liberdade” é tática manhosa
para indignar fachos e amigos-de-fachos, 
ateando as fagulhas reacionárias
e o espírito saudoso do chauvinismo


/

no fim da noite, torno-me destinatária
de um
“tinha saudades tuas”
e eu acho que alguma coisa muda no plural
quando o sentimento abstrato 
se transforma em modo de saudar
ao mesmo tempo que reverte a falta do que enfim se encontra

que bom ter saudades de alguém
quando essa pessoa nos aparece à frente
e nos devolve o desejo

mas nada nunca é só bom ou só mau
e o efeito das emoções é como o de qualquer coisa que se toma,
depende das doses
e do contexto
da mesma maneira que as palavras (trans)formam o seu sentido
através dos seus usos


/

não será um pequeno facho dentro de nós que se alegra
sempre que nos gabamos de uma palavra intraduzível?
do reconhecimento legitimador do estrangeiro?
do nosso orgulho... nacional?

eu não acredito
que haja caminho que se faça 
no combate ao fascismo
sem trair primeiro esta pátria
estabelecendo táticas no trespasse dessas fronteiras
e do que elas legitimam ou não
deixando já de encarar o corpo-outro
numa escala em que se mede o seu valor contributivo
para o "progresso" de qualquer nação


além disso,
um cravo é uma flor
que poderá brotar
de qualquer solo