Do lado de cá, como quem embate contra a força de uma evidência, assisti atónita à profundidade da cena: um quarteto de carne resgatado ao desejo pelo gesto criador que nada pode contra a sua inevitabilidade. haveria outra forma de criar senão pelo impulso do que tem de ser? Resistir. O impacto da coreografia aguarda-se na condensação, circunscrição temporal que emociona por si: a da curta e cruel beleza que se dá e logo termina. Como a de uma canção... Nessa duração da(nça)-se tudo, dando o tempo exato à lágrima para se formar e deslizar.
Uma viagem no tempo, de outra que se deu antes, simulando a vertigem do cimo de um trapézio imaginário, antes do mergulho para os seis braços, os três abraços, movida pela urgência cáustica que sobrevive no corpo assombrado desta bailarina, hoje. Perguntam se a dança pode atravessar o tempo, e se ela conjura, a cada reprise, a mesma emoção. Conjunto de músculos executantes, no corpo dela cabe uma pessoa inteira, e toda a violência que é ser pessoa num corpo; com o corpo ser pessoa. Toda a potência de ser mulher num corpo, pessoa num corpo de mulher.
Adiar o fim, bater no fundo, chocar contra, rendição vs resistência; querer e não querer ser [objeto], seduzir ou ceder, deixar-se moldar ou enrijecer na hora de se dar. A cada gesto, a cada choque, identificação-diferenciação, conflito interno sai pra fora, transborda. No fim, quero bis (e mais e mais, Nina Hagen em repeat), sabendo que esse é o desejo suspenso pelo fio do trapézio imaginário que antecede qualquer embate ou desvio: sempre mais, antes que acabe, ou o desejo seque no canal.
Logo logo vem outro corpo, desenhar com fio real outro caminho. Fala-nos do lado de lá, vestida apenas com uma frágil armadura de plástico e fita cola, cuidadosamente comprimida contra a pele nua. Uma história sobre ida e retorno, rios e mares que ligam e separam margens, pontes que exigem e permitem travessias. Ilustrada pela composição em tempo real de uma maquete com os mesmos objetos que servem de vestido – pensos higiénicos, lenços de papel, palitos, pasta de dentes – a história desenrola-se como um novelo familiar, um mapa de lugares conhecidos. A descrição como ela a descreve, numa visita às memórias de alguém, ou partes soltas de uma memória conjunta, tecida por todas as que conhecem as divisões do mundo. Que o lado de cá não é igual ao de lá, sabemos, mal se passa a linha, a fronteira, o rio, o oceano. Surge a pergunta: para que lado vai quem é expulsa de onde pertence, para onde volta? O corpo atravessa e acena, enquanto a ponte lá se aguenta.
(Cláudia Dias, Visita Guiada [2005], rev. 2023)


