19 agosto 2024

# o quarto dos meus avós





Antes de os meus avós morrerem, quase ninguém se deitava nesta cama, ninguém usava este quarto. Mesmo quando eles não estavam, mais ninguém podia estar, salvo raras exceções. Os outros quartos da casa eram ocupados rotativamente. Nessa altura, o grande pinheiro manso ainda guardava a entrada, e protegia dos tremores da estrada o nosso sono. Nessa altura, a árvore da borracha fazia sombra no jardim inteiro, e a relva era verde, e deitávamo-nos lá depois da mangueirada. Sempre que entrava neste quarto, com pézinhos de lã, punha-me a cheirar os perfumes da minha avó e a experimentar os batons. O crucifixo dava-me medo, mas o que eu mais temia era que me apanhassem ali, naquele quarto interdito, reservado apenas ao casal mais velho da família.
Esta casa tem o cheiro das férias que não voltam e dos amores que já foram. Mas o quarto onde ficávamos, o único com cama de casal para além deste, era no andar de baixo, e tinha um grande armário vermelho com espelho virado para a cama, onde gostava de me observar enquanto dava e recebia prazer. Uma vez, comecei a sangrar do nariz, e o sangue tinha a mesma cor do armário. Nesta casa, apanhei a minha primeira bebedeira e tive o meu primeiro orgasmo. Passagens de ano que acabavam na praia, mascaradas, cantigas, e juras de amizade — o verdadeiro amor que dura.
A pouco e pouco, as infrações foram acontecendo. Quando todas as outras camas não chegavam, o quarto dos meus avós começou a receber outros hóspedes. A partir do momento em que se quebrou, de vez, a regra, ainda demorei algum tempo a experimentar fazê-lo. Ainda me sinto uma espécie de intrusa ali. Aliás, no fundo, é como se, quando eu entro neste quarto, me tornasse outra, e é a vida do quarto que se entranha em mim, como um fantasma desejoso de pecar.