Um amigo meu achou que eu tinha sido demasiado cínica na minha "crítica" ao Her... O texto tem algumas camadas de sarcasmo, é certo. Além de que é apenas uma leitura possível (e até superficial, tendo em conta tudo o que se poderia dizer sobre o filme). Como ele apontou, e bem, Theodore está profundamente deprimido. Pessoalmente, não acho que o filme faça um grande trabalho no tratamento deste tema, em toda a sua complexidade. Sobretudo, parece-me que o próprio filme não empatiza especialmente com Theodore, e que o intuito do Spike Jonze na criação desta personagem não era propriamente que gostássemos dele, não tanto como que tivéssemos pena dele. A alguns isto pode ser sentido como empatia, eu não acho. Mas lá está, mais uma vez, a minha leitura será apenas uma entre muitas outras, sendo que, até numa só leitura, podem e devem caber diversas perspetivas, capazes de abrir um espaço de reflexão. É por isso que interessa pensar e escrever sobre as coisas.
Então, eu fiquei a pensar na depressão de Theodore, que, ao mesmo tempo, toca noutro tema fundamental da minha tese (o luto)... De facto, o estado depressivo de Theodore não passa despercebido, e é apresentado como reação totalmente compreensível ao final da sua longa relação amorosa com Catherine. Theodore está de luto, a tentar ultrapassar a separação. Nesse sentido, o filme é, também, e muito concretamente, sobre o seu doloroso processo de luto, com tudo o que isso implica. Porém, ao ser retratado, acima de tudo, como um estado de solidão, carência total e frustração sexual – que não deixam de ser traços associados a uma experiência de depressão – o processo de luto de Theodore, tal como é exposto ao longo do filme, está totalmente conectado com a sua identidade de género, que o próprio filme explora, apresentando-nos um certo tipo de masculinidade e de experiência masculina da depressão e do luto amoroso.
O retrato que o filme faz da masculinidade não é simpático. Mas também não é exatamente uma crítica àquilo a que normalmente chamamos de "masculinidade tóxica", e muito menos uma tentativa de propor uma contra narrativa que nos dê ferramentas para a combater. E nem é que o filme seja ambíguo a esse nível. Como disse no outro texto, e mantenho, Her é um filme relativamente flat em termos do que comunica, pouco curioso em relação ao potencial dos temas (pertinentes) que trata. Não sou eu que digo que grande parte dos homens do nosso século estão sexualmente frustrados e deprimidos... Basta uma rápida pesquisa na net para encontrar uma série de estudos e artigos sobre o tópico, seja, por um lado, de uma perspetiva conservadora e reacionária, como a que tem fomentado o crescimento da "cultura incel", seja, por outro, de uma perspetiva progressista e interseccional, que, normalmente, aponta justamente o próprio (cis-hetero)patriarcado e cultura machista como uma das principais causas da depressão e solidão masculinas nos nossos dias.
Ora, Spike Jonze parece estar preocupado com estas questões em Her e na forma como constrói a personagem de Theodore. É importante não esquecer que o filme se passa no "futuro". Neste futuro, há muitas coisas que não mudaram em relação ao presente: um homem como Theodore continua a ser visto como um homem-que-não-é-bem-um-homem, pelo menos pelo homem-mais-homem do filme (ler o texto anterior para contexto). Por outro lado, Theodore parece encontrar conforto nesse comentário, demonstrando, nessa cena, que não se sente inseguro em relação à perceção do seu colega. Aliás, Theodore só está preocupado com a validação que recebe (ou não) das mulheres do filme. Elas é que vão mostrar-lhe o que ele vale e até o que ele sente (veja-se como ele fica depois do encontro com Catherine para assinar os papéis do divórcio: até aí, ele estava seguro do que sentia por Samantha, mas o julgamento de Catherine provoca-lhe uma crise; ou o facto de ser Samantha que toma a iniciativa de selecionar um best of das suas cartinhas para publicação, enviando-as a um editor nas suas costas).
A incapacidade de Theodore para "sair" da depressão, a sua inércia, o seu aborrecimento... Theodore não faz nada até ao momento em que as personagens femininas do filme lhe dizem o que tem de fazer, especialmente Samantha. É Samantha que o convence a ir num date (ao qual ele só vai porque uma amiga lhe arranja o contacto), é Samantha que o convence a assinar os papéis do divórcio, é Samantha que o guia, de olhos fechados, a uma banquinha qualquer de comida de rua porque ele tem fome... Estão a ver o padrão? Theodore é uma espécie de fantoche (é essa a punchline do filme, ele é que é um sistema operativo que precisa de comando). O facto de ele estar deprimido e a fazer o luto por uma relação (em que está implícito que foi Catherine que quis acabar) parece servir apenas para que a sua falta de responsabilidade pela sua própria vida seja "desculpada". Até porque são sempre vagas as alusões ao que se passou nessa relação.
[Sim, Theodore admite, a certa altura, a Samantha, que "guardou para si próprio coisas que devia ter partilhado com Catherine" – uma vez mais, tocando num ponto-chave do estereótipo masculino, o homem que não mostra o que sente... Mas depois, o que é que acontece quando ele é honesto com Catherine? Incompreensão total. Todas as outras pessoas do filme (e provavelmente até nós, enquanto espetadores) já aceitaram e normalizaram o romance entre ele e o computador, o que nos impossibilita de ficar do lado de Catherine nesta cena, ou de não achar que ela está a ser, no mínimo, insensível.]
E o filme até poderia usar Theodore para criticar esta tendência... tão masculina... de esperar que seja uma mulher a salvá-lo, a cuidar dele, a preencher o lugar da mãe egocêntrica... E, de facto, como disse em cima, não me parece que o filme simpatize com Theodore ou esteja do lado dele. Mas, por outro lado, será que isso não é, sobretudo, ainda que a um nível subconsciente, uma espécie de aviso aos homens que "não são bem homens"? Aos homens "sensíveis", que não transformam a sua raiva em violência? Que "renegam" a sua agência em prol daquilo que as mulheres querem (ou não querem) deles... Theodore é o estereótipo do panhonha, aos olhos do filme. Ou vá, pelo menos, aos olhos do filme visto pelos meus olhos. Mas penso que o arco da personagem é indicativo de uma ansiedade masculina relativamente à perda daquilo que, no sentido patriarcal do termo, faz um homem – sendo a impotência sexual a metáfora mais óbvia.
Ele começa impotente, frustrado, é incapaz de fazer sexo durante todo o filme (aliás, o único sexo que faz é masturbatório, com a voz de Samantha) e acaba rejeitado, depois de uma série de rejeições. Enfim. Parece-me que este luto depressivo de Theodore é, na verdade, uma projeção de um luto maior... Um luto por uma masculinidade que está a ser consumida e ultrapassada, tal como a tecnologia (personificada em Samantha, her, a "mulher-máquina" do futuro) está a superar as capacidades humanas de escolha, agência, curiosidade. É uma hipótese de leitura! E sim, há um luto a fazer. Pelo bem da humanidade, há um luto a fazer. Mas ainda há um patriarcado por matar antes disso. Como qualquer objeto artístico, especialmente quando falamos de cultura mainstream, Her é um retrato das ansiedades do seu tempo. E, no fundo, embora tenha lugar num hipotético futuro, ainda não imagina (nem permite imaginar) um futuro em que os homens são, de facto, beneficiários da morte do patriarcado.
Perante toda a rejeição, Theodore não tem remédio senão virar-se para a única mulher que resta, Amy, que lhe dará a mão, como sua amiga que é, claro, e que obviamente valida os seus sentimentos. (Ao mesmo tempo, será que esta amizade é realmente recíproca? Não deixei de reparar que, a dada altura, quando Amy desabafa com Theodore, ele não é capaz de dizer uma cena de jeito). Outro aspeto da masculinidade-típica que o filme não contraria é o facto de não haver amizade (profunda) entre homens no filme. Aliás, para além do seu colega de trabalho Paul, só há mais uma personagem masculina no filme (provavelmente a pior de todas), Charles, que é o marido e soon-to-be ex-marido de Amy. Ou seja, está bem que o filme não reforça o estereótipo da "camaradagem" tóxica entre homens, mas também não sugere qualquer outro tipo de relacionamento saudável entre homens, sendo que essa é uma das principais razões estudadas como causa da solidão e depressão masculinas.


