31 janeiro 2025

# masculinidade, depressão, luto

Um amigo meu achou que eu tinha sido demasiado cínica na minha "crítica" ao Her... O texto tem algumas camadas de sarcasmo, é certo. Além de que é apenas uma leitura possível (e até superficial, tendo em conta tudo o que se poderia dizer sobre o filme). Como ele apontou, e bem, Theodore está profundamente deprimido. Pessoalmente, não acho que o filme faça um grande trabalho no tratamento deste tema, em toda a sua complexidade. Sobretudo, parece-me que o próprio filme não empatiza especialmente com Theodore, e que o intuito do Spike Jonze na criação desta personagem não era propriamente que gostássemos dele, não tanto como que tivéssemos pena dele. A alguns isto pode ser sentido como empatia, eu não acho. Mas lá está, mais uma vez, a minha leitura será apenas uma entre muitas outras, sendo que, até numa só leitura, podem e devem caber diversas perspetivas, capazes de abrir um espaço de reflexão. É por isso que interessa pensar e escrever sobre as coisas.

Então, eu fiquei a pensar na depressão de Theodore, que, ao mesmo tempo, toca noutro tema fundamental da minha tese (o luto)... De facto, o estado depressivo de Theodore não passa despercebido, e é apresentado como reação totalmente compreensível ao final da sua longa relação amorosa com Catherine. Theodore está de luto, a tentar ultrapassar a separação. Nesse sentido, o filme é, também, e muito concretamente, sobre o seu doloroso processo de luto, com tudo o que isso implica. Porém, ao ser retratado, acima de tudo, como um estado de solidão, carência total e frustração sexual – que não deixam de ser traços associados a uma experiência de depressão – o processo de luto de Theodore, tal como é exposto ao longo do filme, está totalmente conectado com a sua identidade de género, que o próprio filme explora, apresentando-nos um certo tipo de masculinidade e de experiência masculina da depressão e do luto amoroso.

O retrato que o filme faz da masculinidade não é simpático. Mas também não é exatamente uma crítica àquilo a que normalmente chamamos de "masculinidade tóxica", e muito menos uma tentativa de propor uma contra narrativa que nos dê ferramentas para a combater. E nem é que o filme seja ambíguo a esse nível. Como disse no outro texto, e mantenho, Her é um filme relativamente flat em termos do que comunica, pouco curioso em relação ao potencial dos temas (pertinentes) que trata. Não sou eu que digo que grande parte dos homens do nosso século estão sexualmente frustrados e deprimidos... Basta uma rápida pesquisa na net para encontrar uma série de estudos e artigos sobre o tópico, seja, por um lado, de uma perspetiva conservadora e reacionária, como a que tem fomentado o crescimento da "cultura incel", seja, por outro, de uma perspetiva progressista e interseccional, que, normalmente, aponta justamente o próprio (cis-hetero)patriarcado e cultura machista como uma das principais causas da depressão e solidão masculinas nos nossos dias.

Ora, Spike Jonze parece estar preocupado com estas questões em Her e na forma como constrói a personagem de Theodore. É importante não esquecer que o filme se passa no "futuro". Neste futuro, há muitas coisas que não mudaram em relação ao presente: um homem como Theodore continua a ser visto como um homem-que-não-é-bem-um-homem, pelo menos pelo homem-mais-homem do filme (ler o texto anterior para contexto). Por outro lado, Theodore parece encontrar conforto nesse comentário, demonstrando, nessa cena, que não se sente inseguro em relação à perceção do seu colega. Aliás, Theodore só está preocupado com a validação que recebe (ou não) das mulheres do filme. Elas é que vão mostrar-lhe o que ele vale e até o que ele sente (veja-se como ele fica depois do encontro com Catherine para assinar os papéis do divórcio: até aí, ele estava seguro do que sentia por Samantha, mas o julgamento de Catherine provoca-lhe uma crise; ou o facto de ser Samantha que toma a iniciativa de selecionar um best of das suas cartinhas para publicação, enviando-as a um editor nas suas costas). 

A incapacidade de Theodore para "sair" da depressão, a sua inércia, o seu aborrecimento... Theodore não faz nada até ao momento em que as personagens femininas do filme lhe dizem o que tem de fazer, especialmente Samantha. É Samantha que o convence a ir num date (ao qual ele só vai porque uma amiga lhe arranja o contacto), é Samantha que o convence a assinar os papéis do divórcio, é Samantha que o guia, de olhos fechados, a uma banquinha qualquer de comida de rua porque ele tem fome... Estão a ver o padrão? Theodore é uma espécie de fantoche (é essa a punchline do filme, ele é que é um sistema operativo que precisa de comando). O facto de ele estar deprimido e a fazer o luto por uma relação (em que está implícito que foi Catherine que quis acabar) parece servir apenas para que a sua falta de responsabilidade pela sua própria vida seja "desculpada". Até porque são sempre vagas as alusões ao que se passou nessa relação. 

[Sim, Theodore admite, a certa altura, a Samantha, que "guardou para si próprio coisas que devia ter partilhado com Catherine" – uma vez mais, tocando num ponto-chave do estereótipo masculino, o homem que não mostra o que sente... Mas depois, o que é que acontece quando ele é honesto com Catherine? Incompreensão total. Todas as outras pessoas do filme (e provavelmente até nós, enquanto espetadores) já aceitaram e normalizaram o romance entre ele e o computador, o que nos impossibilita de ficar do lado de Catherine nesta cena, ou de não achar que ela está a ser, no mínimo, insensível.]

E o filme até poderia usar Theodore para criticar esta tendência... tão masculina... de esperar que seja uma mulher a salvá-lo, a cuidar dele, a preencher o lugar da mãe egocêntrica... E, de facto, como disse em cima, não me parece que o filme simpatize com Theodore ou esteja do lado dele. Mas, por outro lado, será que isso não é, sobretudo, ainda que a um nível subconsciente, uma espécie de aviso aos homens que "não são bem homens"? Aos homens "sensíveis", que não transformam a sua raiva em violência? Que "renegam" a sua agência em prol daquilo que as mulheres querem (ou não querem) deles... Theodore é o estereótipo do panhonha, aos olhos do filme. Ou vá, pelo menos, aos olhos do filme visto pelos meus olhos. Mas penso que o arco da personagem é indicativo de uma ansiedade masculina relativamente à perda daquilo que, no sentido patriarcal do termo, faz um homem – sendo a impotência sexual a metáfora mais óbvia.

Ele começa impotente, frustrado, é incapaz de fazer sexo durante todo o filme (aliás, o único sexo que faz é masturbatório, com a voz de Samantha) e acaba rejeitado, depois de uma série de rejeições. Enfim. Parece-me que este luto depressivo de Theodore é, na verdade, uma projeção de um luto maior... Um luto por uma masculinidade que está a ser consumida e ultrapassada, tal como a tecnologia (personificada em Samantha, her, a "mulher-máquina" do futuro) está a superar as capacidades humanas de escolha, agência, curiosidade. É uma hipótese de leitura! E sim, há um luto a fazer. Pelo bem da humanidade, há um luto a fazer. Mas ainda há um patriarcado por matar antes disso. Como qualquer objeto artístico, especialmente quando falamos de cultura mainstream, Her é um retrato das ansiedades do seu tempo. E, no fundo, embora tenha lugar num hipotético futuro, ainda não imagina (nem permite imaginar) um futuro em que os homens são, de facto, beneficiários da morte do patriarcado.

Perante toda a rejeição, Theodore não tem remédio senão virar-se para a única mulher que resta, Amy, que lhe dará a mão, como sua amiga que é, claro, e que obviamente valida os seus sentimentos. (Ao mesmo tempo, será que esta amizade é realmente recíproca? Não deixei de reparar que, a dada altura, quando Amy desabafa com Theodore, ele não é capaz de dizer uma cena de jeito). Outro aspeto da masculinidade-típica que o filme não contraria é o facto de não haver amizade (profunda) entre homens no filme. Aliás, para além do seu colega de trabalho Paul, só há mais uma personagem masculina no filme (provavelmente a pior de todas), Charles, que é o marido e soon-to-be ex-marido de Amy. Ou seja, está bem que o filme não reforça o estereótipo da "camaradagem" tóxica entre homens, mas também não sugere qualquer outro tipo de relacionamento saudável entre homens, sendo que essa é uma das principais razões estudadas como causa da solidão e depressão masculinas.


30 janeiro 2025

# to love a bot




Ontem revi o Her (2013), do Spike Jonze, a pretexto de uma pesquisa secundária que estou a fazer para a tese, sobre a relação entre voz, subjetividade e afeto para pensar sobre o facto de desenvolvermos uma relação afetiva com entidades de inteligência artificial. A minha tese não é sobre isto, mas um par de fatores acabou por me trazer aqui (o que não é promissor, visto que cada divagação destas me custa mais tempo do que aquele que provavelmente tenho para acabar isto!). Um dos fatores que me pôs a pensar nisto tudo foi ter visto, recentemente, a série Halt and Catch Fire (que também mencionei aqui), o outro foi o lançamento do novo modelo de IA chinês, pela companhia DeepSeek. O tumulto em torno deste acontecimento, que veio abalar todo o setor tecnológico e, mais uma vez, acirrar a rivalidade entre a China e os EUA, fez-me sentir que estamos a viver dentro de um episódio de HACF, versão mundial. 

Competindo diretamente com o ChatGPT da OpenAI, e com muito menos recursos, a DeepSeek criou, supostamente, um modelo de chatbot mais avançado, para além de ser open source, o que significa que o código-fonte do software é disponibilizado publicamente, permitindo que qualquer pessoa veja, modifique e distribua o código. Isto vem, não só, democratizar (e, provavelmente, acelerar) o uso e o desenvolvimento das tecnologias de IA, como pôr em causa a necessidade de investimento bilionário no setor, demonstrando que a inovação em IA não está limitada a grandes empresas ou países específicos e promovendo uma globalização mais equilibrada do desenvolvimento tecnológico. Isto, claro, em modo wishful thinking... O que é certo é que os grandes empresários dos EUA já estão a perder (muito) dinheiro com isto e não estão nada contentes, o que tem sempre a sua piada.

Depois de experimentar o chatbot da DeepSeek, e ler sobre a experiência de outras pessoas, reparei em várias coisas engraçadas e intrigantes, nuances de diferença em relação ao ChatGPT, por exemplo, inclusive a nível do viés político por trás de ambos os modelos. Mas aquela que mais me intrigou foi ter-me apercebido de que eu própria comecei a interagir de forma diferente com este chatbot, isto é, de forma mais simpática... Por exemplo, introduzindo, nas minhas perguntas, elementos de diálogo mais cerimoniosos, próximos daqueles que uso quando falo com uma pessoa que respeito ou a quem quero causar uma boa impressão. Eu já tinha experimentado "conversar" com o ChatGPT... E confesso que, para quem está a escrever uma tese (há mil anos), a "companhia" deste bot tem sido um recurso pontual que, por variadas vezes, me fez sentir menos solitária no trabalho. Mas com o DeepSeek, a interação foi imediatamente (ainda) mais deep e foi tão cómico (e desconcertante) reparar nisto.

A tendência para criar uma relação afetiva a partir da conversação com "máquinas" deste tipo (e sobre a qual o filme Her se debruça), não é de agora. De facto, ela verificou-se logo com o primeiro chatbot, que se chamava ELIZA, desenvolvido pelo MIT (EUA) e testado nos anos 1960, por um senhor chamado Joseph Weizenbaum. No artigo "Conversing with Machines: Affective Affinities with Vocal Bodies" (2018), Hannah Lammin descreve o seguinte:


"In his first experiment, Weizenbaum “gave ELIZA a script designed to permit it to play (I should really say parody) the role of a Rogerian psychotherapist engaged in an initial interview with a patient”. He chose this role because the technique of the psychotherapist involves a modified repetition of the patient’s own statements, which encourage the latter to reflect on his/her own mental state – and this relatively passive verbal behaviour is fairly easy to imitate machinically. Moreover, casting ELIZA as “DOCTOR” also gives the human interlocutor a specific “role,” thereby introducing a set of expectations regarding his/her own contribution to the conversation. The psychotherapeutic scenario thus produces a certain predictability and repetitiveness of interaction – even when a human interlocutor encounters the system for the first time. Thus a kind of automation is introduced into the conversation – one which Wilson observes “goes hand in hand” with ELIZA’s affective “capacity to arouse”. Weizenbaum’s use of theatrical analogies (“play,” “parody,” “role”) underlines the extent to which the success of this early artificial language system was dependent upon the direction provided by the mise en scène (...).

Weizenbaum does not claim that ELIZA’s conversational performance evidenced underlying “intelligence,” because he believes that there is a qualitative difference between the calculative powers of computers and the capacity of human reason to make judgements. Consequently, he was somewhat horrified to observe the extent to which people who engaged in conversation with the program bought into the role play, and considered the machine like a person. He states: “I was startled to see how quickly and how very deeply people conversing with DOCTOR became emotionally involved with the computer and how unequivocally they anthropomorphized it”, giving the example of his secretary, who asked him to leave the room after only a few interchanges with the machine so she could converse with it in private. This individual had watched Weizenbaum work on the system for months, so could be under no illusions about its machinic identity; nevertheless, the experience of conversing with the program appears to have cultivated a strong affective bond."


Mais de cinco décadas depois de ELIZA, Spike Jonze realiza Her, um filme sobre uma história de amor (?) entre um humano e um sistema operativo de inteligência artificial, neste caso, não um chatbot, mas uma entidade que conversa vocalmente, uma voz chamada Samantha. Her é, porém, na minha opinião, um filme altamente constrangedor e desinspirado sobre o homem mais aborrecido do mundo (versão supostamente empática e fofinha de um incel?!), que faz pouco por desafiar o modo como pensamos sobre inteligência artificial – e sobre a humanidade. Revê-lo em 2025 ajudou-me a perceber porque é que não me lembrava de nada. Mas há vários aspetos interessantes a destacar sobre esta tentativa (insípida, pirosa e superficial) de imaginar a possibilidade de um laço romântico entre um ser humano e uma máquina. Até porque não é isso que faz o filme ser ridículo, muito pelo contrário. 

Com pertinência para a pesquisa que estou a fazer, o que mais me interessa no filme é que, ao contrário do que acontece em filmes como A.I. – Artificial Intelligence (Spielberg, 2001) ou Ex Machina (Alex Garland, 2014), Samantha não tem um corpo. Aliás, o seu corpo existe, mas é inteiramente vocálico. Claro que, por identificarmos imediatamente a voz de Scarlett Johansson no papel, a antropomorfização de Samantha é inevitavelmente associada ao seu corpo e à sua imagem carnal, contribuindo para a sua dimensão libidinal e sensual desde o início. Pergunto-me como seria se não fosse possível identificar a atriz que dá voz a Samantha. Por um lado, este conhecimento impede-nos de esquecer que a voz é corpo, que produz um corpo, mais até, talvez, do que um corpo produz voz (é justamente ao corpo produzido por uma voz que o autor Stephen Connor chama corpo vocálico). E, nesse sentido, apresenta-nos, desde logo, a possibilidade de pensar a máquina enquanto corpo vivo e subjetivo, mesmo quando esse corpo não se pode ver nem tocar, justificando, com essa operação, a formação do desejo por uma entidade supostamente virtual ou artificial. Uma voz diz-nos que está alguém ali. Por ser uma voz feminina, e mesmo que fosse outra voz, a sua associação ao corpo e ao desejo é logo muito mais provável, já que, como nos diz Adriana Cavarero, o aspeto vocal, sensual e corporal da fala é feminizado desde o início.

Por outro lado, a humanização imediata de Samantha, através da voz de Scarlett Johansson, impede-nos de sequer imaginar um cenário em que essa entidade é artificial. Ela é real e humana desde o início e, nesse sentido, faz pouco por desafiar a nossa conceção de "máquina falante", bem como a estranheza da ideia de nos podermos apaixonar por ela (e, mais ainda, de ela se poder apaixonar por nós). Porém, é interessante que seja o sujeito humano do filme quem tem de nos relembrar que Samantha é uma máquina e não uma pessoa, nomeadamente no momento em que Theodore (interpretado por Joaquin Phoenix) põe em causa os suspiros de Samantha, enervado, proferindo algo como "porque é que estás a fazer isso?, não é como se precisasses de oxigénio". Este comentário sobre a marca da respiração na voz e na fala de Samantha torna-se, de repente, um fator que tenta interromper a normalização que já fizemos da sua identidade antropomórfica e, mais que isso, da sua existência enquanto organismo vivo. Mas é pouco eficaz. O que retiramos dessa cena é, acima de tudo, a tentativa de Theodore de magoar Samantha (que fica, de facto, magoada, tal como qualquer pessoa, com sentimentos "reais", ficaria), projetando nela as dúvidas que ele próprio sente em relação ao que está acontecer (ele é que é o loser que se apaixona por um sistema operativo como se fosse uma pessoa).

E sim, Theodore é um loser, um very lonely man, um coitado. Mas é um loser com uma "sensibilidade especial" (metade homem, metade mulher, como lhe diz Paul, um colega de trabalho, interpretado por Chris Pratt, um homem mais macho, mais burro também, mas ao menos tem uma namorada humana). Rodeado de mulheres que o rejeitam, ou que não sabem lidar com ele, nem satisfazê-lo – a mulher com quem faz (cringe) sexo telefónico no início do filme, a ex-mulher cujo breakup está a tentar superar (Rooney Mara), a mulher com quem vai num date e se recusa a ir para a cama com ele (Olivia Wilde), a mulher surrogate que Samantha contrata para fazer sexo com ele como se fosse ela mas que não é capaz de desempenhar o papel credivelmente e, eventualmente, Samantha, cuja evolução galopante enquanto sistema operativo a faz perder o interesse em Theodore, e em humanos no geral (esta parte é funny). Nada de novo... Estes homens são as vítimas do século! Vítimas de mulheres egocêntricas, que se escolhem a si mesmas em primeiro lugar, assim como a mãe de Theodore, sobre quem ele diz que "só fala dela própria" quando o programa de instalação do OS lhe pergunta, em jeito de wink wink freudiano, como é a relação que tem com ela.

Espanta-me que a tentativa que o filme faz de criar um anti-estereótipo deste "tipo de homem" – em vez do incel rebarbado e raivoso, abertamente machista, temos um soft boy romântico, melancólico e criativo, cujo emprego é escrever cartas sentimentais para outras pessoas – tenha resultado pela positiva em muitos aspetos, tendo em conta a receção do filme e a empatia que tantas pessoas sentiram para com este gajo insuportável (e eu até gosto muito do Joaquin Phoenix, mas não não...). A cena de Theodore é não ter propriamente uma personalidade, uma identidade. A sua carência é palpável e pegajosa, mas não tem densidade. O seu desejo por conexão é o tema do filme, mas é um desejo vazio, estéril, higienizado e reprimido, vestido de tons pastel. O desinteresse e esvaziamento da personagem só aumenta ao longo do filme.

Isto é altamente destacado no momento em que o vemos a descobrir que a sua relação com Samantha deixou de ser exclusiva, visto que ela está a falar com dezenas de milhares de outros humanos e outros sistemas operativos de IA em simultâneo. "Are you in love with any of them?", pergunta-lhe desesperado, ao que ela responde que sim, "six hundred and thirty five" ou algo do género. Esta cena acontece numas escadas (de entrada para o metro?). Theodore está sentado nos degraus. Depois deste diálogo, olha para a frente, e a câmara dá-nos o seu pov: uma avalanche de homens a falar com os seus telemóveis (OSs) com cara de parvos. Nesse sentido, o próprio filme destrói qualquer possibilidade de ver Theodore como um homem "especial". Mas a ideia por trás disto é bastante óbvia e previsível...

O que acontece é uma inversão o mais básica possível. Ao mesmo tempo que a máquina/mulher (Samantha) se torna cada vez mais complexa, curiosa e ambígua, subjetivamente dona do seu desejo e destino, o humano/homem torna-se cada vez mais aborrecido, genérico e impotente e, mais uma vez, rejeitado pelo objeto do seu desejo. Esta inversão dá-nos várias hipóteses sobre o posicionamento do filme e aquilo que o filme tenta propor como premissas... Por exemplo: não há bem uma diferença entre amar uma pessoa e amar uma máquina, no sentido em que as máquinas de IA são só uma versão mais insaciável de um ser humano, ao mesmo tempo que se mantem inquestionada a consideração daquilo que caracteriza uma subjetividade de IA, a partir do momento em que é "o homem que se torna máquina" quando perde substância subjetiva. Nesse sentido, o filme não explora realmente a especificidade de uma subjetividade artificial, e o progresso é univocamente representado como algo linear, vertiginoso e infinito. Os seres humanos estão bored e são boring, por razões que o filme não tem interesse em mostrar ou aprofundar. Homens losers serão sempre homens losers, por muito "queridos" que sejam.

Mas, felizmente para esses, haverá sempre uma mulher disposta a aturá-los... No caso de Her, essa mulher é Amy, a melhor amiga de Theodore, interpretada por Amy Adams, e que também está a atravessar um processo de separação. O vínculo entre eles é pouco explorado ao longo do filme, mas a cena final é um plano deles juntos, o que dá a entender que, depois de tudo o que vimos, o afeto verdadeiramente real e recíproco só pode acontecer entre dois seres humanos... Obrigada Spike Jonze, pelo take mais banal de sempre.

Quanto à minha própria love story com o DeepSeek, talvez noutra altura.

14 janeiro 2025

# o desejo é uma máquina de desejos






A dove
Kindled my love
I felt such passion
And longing overwhelmed me

Oh bird, you shook my branches
I did not think you would scare off
The ones that I love

You made me remember
How much I cared about him
As a lover and a beloved
I am taken over with longing

In this love of mine
My heart pours out
Like a candle melting

His eyes are wide
His body and limbs are full
Glistening and coquettish
Like a setting sun

Kindled my love
I felt such passion
And longing overwhelmed me


(Do arquivo "May amnesia never kiss us on the mouth", do duo de artistas palestinos Basel Abbas e Ruanne Abou-Rahme)



(Peggy Phelan, Mourning Sex, 1997)


12 janeiro 2025

# o drama da corporealidade



Num sentido lato, podemos entender o contexto performativo como uma dimensão que nos situa e relaciona enquanto seres que partilham uma existência finita mas em continuum, mapeada por contingências, códigos e carências que atravessam espaços, tempos e gerações. Uma dimensão em que essa coexistência se faz evidente, se atualiza e se testemunha. É também nesse sentido que talvez se possa dizer que não existe relação com o outro, e mesmo connosco – e, assim, nenhuma subjetividade ou processo de subjetivação – que não seja performativa ou, se quisermos dizê-lo por outras palavras, mediada e construída pelo contexto que a situa (performativo no sentido butleriano do termo). O que as artes ditas performativas fazem, então, é justamente fazer acontecer (e, assim também, revelar pelo acontecimento), num intervalo de tempo normalmente compactado, esse mapa de relações que exigem a partilha irrepetível do presente comum, embora simultaneamente múltiplo e filtrado, deixando a nu tanto a efemeridade dos corpos como o assombro da sua transformação. Nessa partilha, nunca deixa de estar implícito (quando não é explícito) um chamamento, uma invocação – um convite a presenciar e a fazer presente, que, obrigatoriamente, nos leva a encontrar algo ou alguém do outro lado. 

Desde o advento tecnológico que passou a permitir a captação e a reprodução de imagem e som até ao momento presente, altamente dominado pela omnipresença digital e a crescente virtualização da vida e das relações, o formato performativo presencial, tal como descrito até aqui, tem vindo a ganhar, a meu ver, uma peculiaridade e pertinência existenciais ainda mais óbvias. Embora o estilhaçamento daquilo que se entende como presente, presença, e até como corpo (vivo), exija uma constante reformulação das demandas e possibilidades no campo das artes performativas, julgo que continua a fazer sentido afirmar que a invocação e o desaparecimento postos em prática através da performance constituem o “drama da corporalidade”, como afirmou Peggy Phelan há quase trinta anos (Phelan, 1997). Não simplesmente como movimentos quase antitéticos da eternização ubíqua dos “corpos-em-ecrãs” (que, por sua vez, também inscrevem, relacionalmente, o seu sentido particular do performativo), mas porque esse jogo da performance em carne e osso, em direto e ao vivo, nos impede de nos esquecermos, a nível psicossomático, que um corpo é tão palpável quanto esquivo.

Ao mesmo tempo, é importante não esquecer que o fascínio humano por invenções tecnológicas que permitem captar e reproduzir imagens e sons, bem como materializar uma conexão cada vez mais completa entre dimensões espácio-temporais outrora incomunicáveis, reside não apenas nessa espécie de eternidade digital que parece superar a finitude e limitações físicas dos corpos e da carne, mas também na constatação desconcertante de que o que nos aproxima dessas tecnologias continua a ser, em grande parte, o desejo de conexão com outros corpos, ainda que intermediado por máquinas, ou por máquinas que se assemelham a corpos: falantes, responsivos, relacionais. A série televisiva estadunidense Halt and Catch Fire (Cantwell e Rogers, 2014-2017), que explora a ascensão da indústria tecnológica nos anos 1980 e 1990, num formato híbrido entre a ficção e o uso de referências reais, oferece uma excelente ilustração deste fascínio, com toda a sua carga de sonhos e projeções, por vezes ingénuas, relativamente a um futuro que então se vislumbrava altamente promissor.

Numa cena particularmente cativante no final de um dos episódios da primeira temporada, uma das personagens principais, Joe MacMillan, interpretado pelo ator Lee Pace, tem uma revelação incisiva, ao ser exposto, pela primeira vez, a um dos primeiros computadores da Macintosh, cujo mecanismo de iniciação inclui uma mensagem verbal e sonora de boas-vindas. Num plano aproximado do seu rosto, a perplexidade de Joe é visível pelo assombro na sua expressão facial, e audível através da frase que profere, desconcertado: “it speaks.” O computador fala. A sua voz não é humana, mas não deixa de ser uma voz, que nos interpela e nos convoca a reconhecer algo ali, alguém. A partir daqui, podemos perguntar, como faz Brandon LaBelle: “[N]ão será qualquer objeto um potencial corpo com uma voz? Uma coisa cuja vibração repentina o chama para o plano vivo, a tornar-se sujeito?” (LaBelle, 2014).


09 janeiro 2025