14 fevereiro 2025

# uma história de amor que se conta (canta)

1. A canção é uma dedicatória.
2. A canção é uma ponte.
3. A canção é uma âncora.
4. A canção é uma chama.
5. A canção é uma cápsula (que derrama).

Eu & Tu (ou) um amor para toda a vida.

09 fevereiro 2025

# ainda sobre a voz e todos os seus limiares

 




Quarta feira passada fui ver e ouvir a Meredith Monk ao vivo. Foi maravilhoso, e algo que nunca pensei que aconteceria. Aliás, se não fosse a minha amiga Matilde, duvido que me tivesse apercebido sequer que ela vinha a Lisboa, tão absorta que tenho estado na saga da tese e ausente da bolha virtual onde os anúncios culturais circulam. 
Um dos meus momentos preferidos (para além da Happy Woman) foi o seu "duet for a solo voice", Click Song #1. Nesta canção, uma suave melodia vocal contínua é trauteada ao mesmo tempo que diferentes estalinhos bucais, de lábios, dentes e língua, são introduzidos nessa linha melódica, criando um ritmo orgânico. Duas texturas, uma só voz e uma só boca, a conversar consigo mesmas.

Fez-me pensar neste excerto da Maria Gabriela Llansol:

"______ prendeu a cabra a um castanheiro que se via da janela mas estava longe; a cabra não deixava de se ouvir e, mesmo depois do pôr-do-sol,   balia; disse que ia cortar-lhe o som, e dirigiu-se para ela com a mão direita e uma faca; o pêlo agitou-se sem balir, e ficou a sangrar; mais nenhum ruído atravessou o nosso sossego, mas uma segunda língua, com parte no céu-da-boca, principiou a nascer-lhe,    e foi ela a voz.
O lugar da intersecção da língua arrancada com a outra língua transparente é herança da rapariga que temia a impostura da língua. Por isso, eu tenho de encontrá-la, e trazê-la para fora da sua nostalgia infinita. E não só. Da intersecção das duas línguas – a que se ouvia balindo, e a que nasceu do sangue – voou o Falcão, ou Aossê feito ave.
Falo ao cordeiro-objecto, cantando estas circunstâncias nascentes que sobrevieram. Na casa, não se administrava bem a Justiça da língua."

em: Um beijo dado mais tarde
          
                                   


Além disso, fez-me pensar na coerência, esse apelo infernal para coincidirmos connosco mesmas quando, nos nossos diálogos internos (polílogos, na verdade), são sempre tantas e tão díspares as vozes que ressoam. A canção da Meredith é uma ode à incoerência e à dissonância/des-sincronia contida num só corpo que ela, de facto, é, tanto quanto um lembrete de que a voz contém já sempre o outro dentro. Porque a coerência tem estado no centro das minhas preocupações e é, ainda, um requisito da academia para legitimar qualquer tese que se possa chamar assim, e ao mesmo tempo que tão evidentemente constato a impossibilidade física dessa ideia de coincidir comigo própria, estou a tentar criar aberturas que permitam a canalização dessas muitas partes (vozes) que me compõem. Na verdade, lembro-me de fazer isso desde que sou pessoa, e a minha necessidade de cantar teve sempre alguma coisa a ver com isto. Com os limites e as fronteiras entre essas várias partes, a sua articulação contaminada pelo outro que a voz sempre convoca.

Sobre o ato e a experiência de cantar e a sua relação com a “agitação de fronteiras”, o autor Brandon LaBelle diz que estes nos levam a externalizar uma parte de nós que é distinta do nosso sujeito-falante e que, nesse sentido, nos conduzem já ao palco (“stage”), isto é, à possibilidade de encenar/encenação (“staging”), e a todas as potencialidades de exploração performativa e imaginativa (do eu) que esse espaço e esse gesto prometem, com efeitos transformadores a nível individual e coletivo (LaBelle, 2014). Mas eu acho que isto tem a ver com o potencial relacional da voz, antes sequer de ela se tornar veículo do canto.

Ao contrário do que se diz com muita frequência, a nossa voz não é apenas nossa, nem exprime algo intrinsecamente singular ou único. Dentro de uma voz, já estão todas as outras. Ela é coletiva no seu core, da mesma forma que o é a subjetividade. Tenho percebido que talvez seja por isso que não gosto especialmente da frase "qualquer um pode cantar", nem dos apelos para que "encontremos a nossa própria voz", na medida em que a voz é sempre o mais-de-um, a "segunda língua" que junta a(s) herança(s) com o presente partilhado em que a voz ressoa, gerando relação, e cuja qualidade relacional tem muito mais a ver com escuta do que com emissão.


Na etimologia do latim vox, o primeiro significado de vocare é "chamar" ou "invocar". Antes de se fazer discurso, a voz é uma invocação que se dirige ao outro e que se confia a um ouvido que a recebe. (Cavarero, 2005)

(continua...)

06 fevereiro 2025

# a forma das ideias



 
  

A minha pesquisa sobre voz, luto e fantasmas está a cruzar-se de maneiras curiosas e inesperadas com as questões que se-me têm imposto em torno das tecnologia(s), a internet, as redes sociais, a inteligência artificial (e vice-versa). Fico sempre em modo espanto quando uma conexão, muitas vezes proporcionada pelo acaso, dá origem a todo um espaço novo de reflexão e imaginação, que gera outras conexões e outras conexões e outras conexões, relações — links. Ao mesmo tempo, é fascinante constatar o que essas conexões fazem ao corpo, como se integram materialmente no tipo de gestos que fazemos, no modo de estar atenta, na escolha das palavras que usamos para tentar não chegar a um destino, mas continuar em busca. A busca fantástica pela transformação que é a forma da(s) ideia(s). (Ou seja, contrariando o sistema platónico da ideia/forma como molde fixo, à imagem da qual só podemos tentar corresponder — que herança tão frustrante!). Esta perceção do funcionamento plástico do "conhecimento", para invocar Catherine Malabou, uma autora que me tem guiado nestas indagações (e cujo livro Plasticity at the Dusk of Writing me deixou completamente mesmerizada), é paradigmática de um aqui-hoje que precisa de lidar com o cancelamento do futuro que Berardi diagnosticou — outra maneira de dizer que o futuro é "o horizonte que se move" e que nem o pessimismo escapa à brecha que abre para que outra forma se venha emancipar ao que se profetiza com o fatalismo de um diagnóstico. A minha mãe teria uma explicação astrológica para o que se está a passar — plutão saiu de capricórnio e entrou em aquário! As coisas "estão sempre a mudar", é certo, mas precisamos tanto de acreditar nisso quanto nas "coisas que não mudam": os arquétipos são úteis num mar de incertezas.

Noutro dia, disseram-me: “o dia em que deixarmos de dialogar com Platão é o dia em que a gente perde a borda!”. Dentro de um sistema de pensamento de raiz platónica (no qual as coisas são na medida em que encaixam na sua forma própria e ideal), a possibilidade de qualquer coisa ser é configurada nos termos de um delimitar, incluindo o “eu” (um saber onde se começa e onde se acaba). Essa possibilidade é também a da sua sanidade, pois que “perder a borda” é, nem mais nem menos, “perder as estribeiras”, ficar louca (fora de si). Isto pode dizer-nos algo fundamental sobre como o apego a uma noção de identidade, que se edifica no pressuposto de que há algo a ser delimitado, se baseia numa premissa de controlo, numa necessidade de domínio e manutenção. Sabemos bem o que isto tem significado ao serviço da hierarquização (antropocêntrica, patriarcal, colonial) do conhecimento (e das identidades), por um lado, e, por outro, da legitimação de um discurso que patologiza o fora da norma que essa mesma hierarquização produziu, e de que o capitalismo vampírico se apropria, ao mesmo tempo que lucra com essa suposta versão de insanidade (só há um caminho para o sucesso, "keep up, hold it together"!).

Ao mesmo tempo, lidar com a constatação (e as consequências) de uma instabilidade constante, que governa toda a precariedade instalada, das mais variadas formas, é necessário. Começa com sentir, no corpo, as contraditórias forças dos tempos: eu já estou a morrer, bem sei, mas sempre a renascer, a cada nova versão de mim que encontro nesse caminho. E embora seja bonito todo o discurso sobre aceitar a impermanência, treinar o desapego (desde logo em relação ao que já não serve, o que calcificou e deixou de acompanhar a necessidade de reinvenção e renovação, a inevitabilidade da metamorfose — como o hardware que já não aguenta a nova versão do software — é preciso ter cuidado na instrumentalização (inevitável) que fazemos dessa forma de encarar o fluxo das coisas. É preciso, sempre, condicionar (moldar) o curso das ideias que se formam: o software continua a precisar de um hardware que o suporte. Mais uma vez, não queremos cair na esparrela de Platão (esse fantasma tão chato!)... Mas talvez a sua insistência em nos assombrar (para sempre?) possa ser reenquadrada nos termos de uma resistência à mudança da qual precisaremos ainda? Pelo menos enquanto ainda temos um corpo que se (de)compõe dia após dia, e que ainda precisa de descansar: parar, encontrar o seu centro e o seu contorno, ainda que temporariamente.

A obsessão (humana?) pela sistematização, estruturação, catalogação, delimitação, [inserir outra forma de dizer "controlar uma narrativa de organização relacional da diferença"] não é sempre o movimento do conservadorismo no seu sentido mais negativo. Até porque essa obsessão também produz a transformação que tenta conter, e isso é muito engraçado. Estamos sempre a tentar não morrer, mesmo quando isso significa matar certas partes de nós. Da mesma maneira que manter o outro como parte de nós (inclusive um outro que fomos e já não somos, mas alargando o contorno de quem somos às relações com os outros que nos constituem) já é a demanda anti-morte-como-fim-da-linha (é isto o luto, diz Derrida). Construir um sentido, materializar ideias em crenças inabaláveis, contrariar a propagação infinita (exaustiva) das ideias, resistir à "versão melhorada" que nos é exigida pela máquina insaciável do "progresso" (?), rastrear o traço, encaixar na nossa sombra tanto quanto ela se altera a cada gesto, na mesma duração do gesto. Eu não sei bem para onde estou a ir... Mas toda a gente precisa de uma casa onde caiba, onde pertença, onde possa guardar as suas tralhas; um lugar aonde possa voltar.



O que é que isto tem a ver com a voz..? Ela coincide e não coincide com o corpo. Como afirma Dominic Pettman, ecoando uma série de outras vozes que se têm dedicado ao seu estudo, “a voz é ambígua, ambivalente e enigmática”. Freya Jarman-Ivens é outra das autoras a reparar que “há um problema fundamental com a voz, um conjunto de ilógicas centrais à sua definição e o seu modo de funcionamento”, que “toma a forma de uma série de paradoxos e oposições”. Ou Stephen Connor, que, sobre a sua voz, diz algo como: “para ti, vem de mim; para mim, sai de mim.” O enigma da voz reside tanto no seu potencial conjurativo – a sua capacidade para produzir corpo, ser corpo – quanto no seu poder fantasmático –  a sua capacidade para se desprender do corpo, soar sem corpo (a chamada voz acusmática). A voz é liminar.

O termo “liminar” (ou “liminal”) surgiu inicialmente no âmbito da etnologia, introduzido pelo etnólogo e folclorista Arnold van Gennep no início do século XX, para descrever certos rituais, realizados em/por diversas culturas, que assinalam ou celebram momentos de transição e mudança. Os chamados “ritos de passagem” são caracterizados enquanto situações liminares por se situarem entre dois estados ou condições – pré e pós-mudança. Já evidenciado na própria expressão, estamos perante uma instância transitória, que nos aponta para um processo durante o qual uma pessoa ou conjunto de pessoas ainda não abandonaram por completo o seu estado ou a sua condição anteriores mas também ainda não se instalaram num estado ou numa condição subsequentes. 

O liminar sugere então uma potência criativa e generativa que aponta para uma temporalidade intervalar, aberta ao que está por vir, ao mesmo tempo que se mantém conectada ao que lhe antecede, desconcertando noções lineares de tempo, presente e presença. O liminar impede-nos de incompatibilizar a mudança e o movimento com tudo aquilo que conduz a qualquer crise e a suspensão que caracteriza qualquer intervalo. O marginal que já está dentro. 



A imagem de um sulco na areia apareceu associada à de uma ferida frágil, no espaço onde alguma (outra) coisa teria estado, a fazer peso e a deixar a sua marca. Doía um pouco, mas o impulso de massajar essa ferida era interceptado pelo medo de destruir a sua marca, bloqueava as mãos. Surgiu-me então a hipótese de que essa brecha na areia pudesse servir de molde, receber o líquido de um material, tipo metal fundido, que, ao mesmo tempo, protegesse a forma da ferida e a solidificasse, como réplica invertida do sulco. Cada réplica seria sempre única a cada replicação, contaminada ainda pelos restos de metal que teriam ficado presos no molde por causa da réplica anterior, e formando novas saliências. Um bicho prateado do tamanho de uma mão, afiado no bico, como um punhal. Um objeto amuleto, para fazer (outros) desenhos na areia. Desenhos, ou palavras... Shane Butler diz que a escrita foi o primeiro fonógrafo.


01 fevereiro 2025

# o meu samsung branco




Fui buscar o meu velho samsung branco. Ainda funciona. É tão pequenino. Pus o meu cartão e encontrei uma série de mensagens antigas, românticas. Tudo isto como parte de um plano para passar menos tempo sugada pelo retângulo viciante das aplicações de conteúdo infinito. No meu pequenino samsung branco, o conteúdo tem um início e um fim. Ontem, nas pausas da escrita, no caminho de autocarro, reli as mensagens várias vezes. E reparei num espaço que se foi abrindo na minha cabeça, que ultimamente está sempre tão cheia e atarefada, como se tivesse uma ventoinha a girar sem parar lá dentro. Parece que há muita gente a sofrer do mesmo mal e a aperceber-se de que tem de fazer alguma coisa em relação a esse mal-estar causado pelo
doomscrolling. O algoritmo já me topou, como topa sempre, e nos últimos dias fez-me chegar uma série de testemunhos de outras pessoas que querem passar menos tempo no telemóvel e nas redes sociais, a falar sobre aquilo que fazem ou tentam fazer para contrariar esse vício — nas redes.

Num dos vídeos que me apareceu no Tik Tok, uma rapariga dizia que as pessoas não saem das redes por fomo do mundo digital, sendo que a difusão massiva do termo (e do fenómeno que lhe está associado) está relacionada com o aumento e banalização do uso de redes sociais como plataformas públicas de display de experiências pessoais. Ou seja, as pessoas começaram a sentir fomo em larga escala por não estarem a fazer o que viam os outros fazer na vida física, não-virtual. Esse fomo não deixou de existir. Mas agora, as pessoas também sentem fomo por não estarem online. E faz sentido que assim seja, é assim que as apps estão programadas para funcionar, para nos agarrar. O metaverso.

Demonizar as redes sociais e as tecnologias, no geral, sem soar mega old não é fácil. Mas também não basta ir pela via do "tem coisas boas e coisas más, como tudo!" Além de que há cada vez mais pessoas jovens a querer sair deste loop. No meu caso, acho que talvez nunca tenha pensado tanto nas implicações deste estado de coisas como agora. Aliás, não é que eu não tenha pensado, já pensei muito sobre isso, e nada disto é novo (aconteceu com a tv, com os computadores, os videojogos, a net em si) mas talvez tenha chegado a um ponto em que sentir-me sugada pelo doomscrolling, dia após dia, está a tornar-se num problema verdadeiramente crítico para mim, para a minha saúde, a minha capacidade de estar presente (?)

Voltar a escrever neste blog — voltar a usar esta plataforma — também me ajuda a passar menos tempo ao telemóvel, sem me "desconectar" totalmente da possibilidade de existir um recanto virtual onde podem encontrar-me, onde quer que estejam. Essa parte "mágica" da net ainda é real e realmente emancipatória a muitos níveis. Claro que no capitalismo tudo é apropriável e transformável em algo rentável... Os acessos não são distribuídos de um modo justo, há sempre forma de engolir qualquer tentativa de "escapar"... Ou, como sugere o Varoufakis, isto já nem é capitalismo, mas sim tecnofeudalismo, e estamos todas a trabalhar de borla para os shareholders do big tech... 

E pode ser ridículo encontrar algum consolo no facto de ainda ser possível inventar um url e criar uma espécie de salinha virtual personalizável, com os objetos encontrados, seja aqui seja fora daqui, com links que nos levam para outros lugares, e desses para outros, claro, mas em que o recheio desse recanto é circunscrito, com um início e um fim, como a caixa de mensagens do meu mini samsung branco. Bem, ridículo ou não, é melhor do que não conseguir parar de scrollar. Sem anúncios.