21 junho 2025

# adormecer com o não, acordar com o sim


Acordo uns segundos antes das badaladas, com os sonhos colados aos olhos, o corpo dorido. Viagens e mortes — e coisas que não se dizem, só se imaginam. Uma central de comando para descodificar mensagens — coisas que já não somos capazes de fazer sozinhas. Objetos e partes de construções que estavam em órbita e começam a cair na Terra. Sangue e corpos mutilados. Um elevador. Um avião. “Estou contigo” — mas é role play. Uma casa que não é a nossa. Estamos à procura dos copos e do álcool. O nosso amigo filmou a manifestação. Vamos ver. Aparecem pessoas iguais a nós onde não estivemos. Bandeiras, por todo o lado. Há qualquer coisa “vintage” que se mantém e percorre o sonho. Aquele gosto que as coisas pareciam ter quando o futuro ainda era muito distante.

Ontem, depois do jantar no pátio, mais uma daquelas conversas em que é preciso preparar o terreno. Há palavras e expressões que já saíram do meu vocabulário, conceitos que me recuso a considerar por aquilo que carregam, por parecerem duros e serem afinal tão fracos:

— “natureza humana”.

Isto não é sobre saber mais mas sim sobre saber admitir que não sabemos assim tanto. Que partir dos conceitos “em si” não nos serve mais, que tudo quanto seja ir contra o império implica (continuar a) partir pedra aí, não desistir de pôr em causa tudo quanto tenha o sabor da totalização, da intemporalidade, da universalidade.

A pouco e pouco, vamos. Lançando, ainda assim, as nossas âncoras de vez em quando, porque ainda precisamos delas.

O meu primo interroga-se: será que alguma vez nos livraremos disto? — isto é, da linguagem enquanto sistema de abstração, do signo e do símbolo. Ele queria dizer: da mediação.

(Neste pátio só se fala de grandes questões e problemas — e que grandes conversas tínhamos com a nossa avó, que adorava sentir o anoitecer sentada nesta mesa de pedra, nos verões em que cá estava, e é a minha mãe que se lembra de a chamar, e a verdade é que nos fez companhia até ao fim da conversa).

Talvez não…, respondo ao meu primo. Mas hoje acordo com outras ideias. Outro prisma. Somos habituadas a achar que palavras são coisas que usamos para substituir as coisas que nomeiam. Mas podemos ainda falar de linguagem quando já não é preciso explicar nada? Quando podemos usar as palavras apenas para desenhar? Os conceitos, que as palavras fazem o favor de tornar circuláveis, são um meio, não um fim. Um dos meios ao nosso dispor para construir mundo — “a constituição em força de uma sensibilidade”. O projeto de fingir que “as coisas são como são” fez de tudo para ocultar a plasticidade dos conceitos, da linguagem, das palavras. Para construir uma cosmovisão dominante que irradia do centro, nas suas várias versões, obcecada com as essências.

Tendo nascido dentro da supremacia da linguagem (semântica, em particular), como se ela fosse a nossa única possibilidade de ligação ao mundo, menosprezamos (com frustração) quando, por vezes, tantas vezes, as palavras não nos satisfazem, não nos servem. É uma dependência. E não se pode dizer que esteja assim tão à mão a sabedoria dos pós-estruturalistas, na redoma que construíram à volta das mesmas palavras que tentaram escancarar. Não podendo “escapar-lhes” (às palavras, digo) por completo, nem culpá-las por fazerem aquilo que é suposto — regular distâncias — talvez, se nos empenharmos em aceder a outros modos de sentir, conhecer e comunicar… “uma disciplina da atenção”. Isto é algo que se treina e que se pode transmitir.

Talvez seja aí que começamos a “falar” por telepatia e a ver o futuro. Isto é, a ver todos os tempos agora, em vez de sentir o presente como um momento enlatado. A não duvidar da presença do que não se agarra. Aprender a confiar; ensinar o corpo (dos pés à cabeça) a escutar(-se), a deixar-se atravessar, a deixá-lo guiar-nos. 

E a pouco e pouco, quando tudo começa a ser processado enquanto fluxo, processo, relação, é aí que se começa a abrir mão — do conceito como base, do “mas isto é objetivo” quando é constructo, da ciência como verdade, do não pôr em causa os nomes. E aí a comunicação flui de outra maneira, porque deixa de ser sobre discordar e passa a ser sobre multiplicar hipóteses. Onde as palavras talvez descubram usos imprevisíveis a toda hora e já não como exceção — seremos poetas, sem por isso nos distinguirmos.


E esta mania de achar que é humano o dom de codificar... Os pássaros, que me acordam todas as manhãs, hão-de ter os seus mecanismos de interpretação para distinguir os seus cantos uns dos outros. Qualquer pessoa que estude pássaros hoje, ainda para mais se o fizer com uma certa sensibilidade (contra o império), teria muito para se rir da nossa ignorância. E dos pássaros então, nem se fala.

15 junho 2025

# por falar em medo

 

Todas percebemos o que significa, neste momento, apelar a que o medo não se torne a emoção dominante e petrificadora perante o atual estado de coisas e, em particular, os recentes episódios de agressões de grupos de extrema-direita, cuja violência se vê como cada vez mais legitimada. Mas talvez fosse pertinente questionar o medo como foco de uma demanda de mobilização geral contra o racismo, a xenofobia (e outros ismos) que, longe de serem características excecionais destes grupos, fazem parte do aparato institucional a que, ironicamente, se apela. Se sabemos do que estamos a falar quando falamos em violência sistémica, percebemos que os órgãos estatais, legais e policiais a que nos dirigimos quando reivindicamos a criminalização e a punição destes grupos, são, na verdade, agentes responsáveis na sua normalização – e assim também não nos deveria espantar que haja até uma confluência de indivíduos entre uns e outros. 

Será que exigir ao Estado que se posicione e intervenha contra esta violência terá um resultado diferente daquele que é já o seu modus operandi, a sua receita em tempos intempestivos: mais controlo, mais vigilância e mais policiamento? Não haverá milagres, nem será por magia que, de repente, as mesmas instituições criadas para proteger uma determinada ordem, uma determinada hierarquia, uma determinada relação de poderes – sendo ela classista, colonialista e patriarcal até ao tutano – vão começar a agir a favor dos interesses de quem está, realmente, nas posições mais vulneráveis à violência destes grupos na sociedade. Isto é evidente na instantânea equiparação dos “extremos” que sucede nestas situações, por parte de figuras com visibilidade mediática, completamente alucinadas, e muitas vezes sem qualquer contraditório.

Por outro lado, pensemos em conjunto: a nível retórico, não será o foco na questão do medo, desde logo, e nos termos em que ela é invocada, um rótulo de passividade espectacular? “Não queremos viver num país do medo” é uma constatação evidente que não nos desafia a nada mais do que a ter um posicionamento – e, ainda por cima, bastante vago. E não é que não seja importante que esse posicionamento se faça e se dê a conhecer de algum modo, mas não seria agora um bom momento para pôr em causa o alcance deste tipo de frases vagamente unificadoras, altamente descomprometidas e, acima de tudo, sem qualquer tipo de chamada à ação concreta que não aquela que reafirma a sua confiança nas instituições do sistema? 

Mantendo até o mesmo tipo de frase, poderemos pensar que diferença faria se o foco estivesse naquilo que queremos em vez de ser naquilo que não queremos? Num posicionamento afirmativo, ao invés de num posicionamento defensivo? Na coragem de que precisamos em vez de no medo que nos assola? Talvez aí se revelasse a necessidade de antagonizar a resistência, de entender realmente que barcos existem e que não, não estamos todas no mesmo barco… Que negar isso, na fé de uma união frentista antifascista, é adiar um embate que provavelmente se tornará inadiável, e para o qual estaremos menos preparadas quanto menos nos predispusermos a enfrentar a falência de um posicionamento defensivo, pacificador e legalista.

Não escrevo com certezas absolutas de nada, reafirmando sempre que me parece estar tudo por fazer e ainda por desfazer, neste limbo constante entre ir fazendo e pensar no que pode ser feito – coisas que acontecem a par e passo e que nos exigem força, espírito crítico, e capacidade de aprender com o passado histórico e recente, desenterrando conhecimento que nos tem sido negado, ao mesmo tempo que precisamos de desaprender tanta coisa. Parece-me, porém, que uma postura que se assume na base da negação (fator indispensável a uma ação de denúncia e reivindicação de algo que se quer contrariar, rebater, contra-atacar), mas que o faz dirigindo-se ao "poder político", não tem como não morrer na praia quando se fica por aí.

Que temos de ocupar as ruas, isso é certo. Mas continuar a fazê-lo nos parâmetros em que tem sido feito, à espera que a mudança venha de cima, contribui para prolongar uma desresponsabilização coletiva sob a ilusão de que o protesto às autoridades é suficiente. 


*


Como qualquer emoção, o medo tem uma função cognitiva de situar o nosso corpo num determinado ambiente e influenciar o modo como nos iremos movimentar nele. Lido à letra, “viver sem medo” – isto é, erradicar o medo das nossas vidas – seria como viver sem o botão psíquico e somático que se ativa quando somos confrontadas com a perceção de perigo ou insegurança.

Nesse sentido, precisamos, de facto, do medo. De saber senti-lo e de processar aquilo que nos está a mostrar, até se transformar noutra coisa. O modo como o nosso corpo responde ao medo não é igual para toda a gente nem em todas as situações. Se o medo pode ter um efeito paralisante, também pode ser a emoção que nos leva a evitar ou a fugir de uma situação potencialmente perigosa ou a gritar por socorro, a identificar o que nos assusta e como podemos sair dali em direção a um lugar seguro. Que lugar seguro será esse? A resposta não é igual para todas.

Cada vez sinto mais que, para contrariar a lógica binária no que diz respeito às emoções e à sua catalogação em positivo versus negativo, se é realmente a liberdade que nos interessa (mais uma vez, a liberdade de quem?), não é grande estratégia tentar criar um sapato que caiba a todas, quando nessa ambição universalista caímos justamente na totalização. E que falar de liberdade é menos útil do que falar em libertação, no que a isso diz respeito. Mas o comum existe. No leque das emoções que, provavelmente, estaremos a sentir coletivamente, o medo é, sem dúvida, uma delas, e com razão. Assim, trabalhar (com) a energia do medo e treinar o nosso corpo para identificar e sentir medo neste momento é importante.

Rastrear aquilo que mais nos assusta e observar as formas que o medo assume no nosso dia-a-dia. Perceber as diferenças entre os diferentes medos que sentimos, os seus tamanhos e efeitos, de onde vêm, e a sua correspondência com o nível das ameaças reais que enfrentamos e aquelas que são geradas em torno de percepções mais abstratas. Encontrar canais criativos para a sua expressão. Constatar como o medo é instrumentalizado pelo poder, aqui e em toda a parte. Procurar conhecer o(s) medo(s) dos outros, naquilo em que são parecidos e naquilo em que são distintos. Criar espaços e disponibilizar instâncias em que nos sentimos seguras e onde podemos ser acolhidas e acolher outras pessoas que também estão a senti-lo. Ou, pelo contrário, conhecendo melhor os medos dos nossos inimigos, identificar, por extensão, as suas fraquezas. Desenvolver e partilhar práticas e táticas de auto-defesa e auto-proteção, a nível individual e coletivo. 

O medo é uma emoção útil em muitas circunstâncias, inclusive agora, mas é capaz de não ser o melhor outlet para uma mobilização política de revolta e tomada de ação pública em reação àquilo que está em causa. O medo não é uma emoção propícia a um estado de espírito revolucionário, porque leva o nosso corpo a procurar a segurança e a apaziguação, o conforto e a conciliação. E honestamente, essa procura fica muito aquém daquilo que precisamos de levar para a rua neste momento. Ou seja, por um lado, isto poderia ser algo que corrobora a premissa do “não querermos viver com medo”. Por outro lado, o que estou a dizer é que não basta dizer que não queremos viver com medo – aceitando já que é sobre a rejeição dessa emoção (instalada) que operamos. 

Embora, dentro do contexto, o apelo convoque a pressuposição de outras emoções quando invocado na forma negativa – indignação, frustração, ansiedade, preocupação, entre outras – não deixa de dar destaque a todo um espectro que opera sobretudo no âmbito emocional da fragilidade – impotência, desamparo, insegurança, exposição/rejeição. É nesta premissa que facilmente resvalamos para um discurso que fantasia com uma resposta securitária, sobretudo se nos estamos a dirigir aos aparelhos institucionais. Porque não a raiva? O ódio à injustiça? Porque temos medo de assumir realmente uma frente de combate?

Mas além disso, voltando à questão dos inimigos, urge convocar uma reflexão um pouco mais exigente sobre as dinâmicas de subjetivação em jogo nestes apelos unificadores, para chegar à conclusão de que as emoções não são o melhor ponto de entrada neste tipo de convocatórias, nem tão pouco nos servirá um humanismo lato que se esquiva ao antagonismo que possa fazer frente à opressão cada vez mais latente, e nos sirva na constituição de uma luta contra a escalada do fascismo. Estes grupos de extrema direita não são uma anomalia do sistema, mas uma expressão impecável dos vários pilares que sustentam aquilo que o capitalismo está desenhado para produzir e reproduzir.

Por fim, ainda muito poderia ser dito sobre a perspetiva patriótica que o apelo assume no destaque ao “país” como lugar onde não queremos viver com medo… Independentemente de se estar a reagir a algo que está a acontecer em Portugal, sabemos bem que estamos perante um cenário que, apesar das suas variantes geográficas, só pode ser devidamente compreendido (e combatido) de uma perspetiva internacionalista, no derrubar de uma visão fronteirista e na construção de uma solidariedade que terá de se erguer contra o poder e não com ele.