Acordo uns segundos antes das badaladas, com os sonhos colados aos olhos, o corpo dorido. Viagens e mortes — e coisas que não se dizem, só se imaginam. Uma central de comando para descodificar mensagens — coisas que já não somos capazes de fazer sozinhas. Objetos e partes de construções que estavam em órbita e começam a cair na Terra. Sangue e corpos mutilados. Um elevador. Um avião. “Estou contigo” — mas é role play. Uma casa que não é a nossa. Estamos à procura dos copos e do álcool. O nosso amigo filmou a manifestação. Vamos ver. Aparecem pessoas iguais a nós onde não estivemos. Bandeiras, por todo o lado. Há qualquer coisa “vintage” que se mantém e percorre o sonho. Aquele gosto que as coisas pareciam ter quando o futuro ainda era muito distante.
Ontem, depois do jantar no pátio, mais uma daquelas conversas em que é preciso preparar o terreno. Há palavras e expressões que já saíram do meu vocabulário, conceitos que me recuso a considerar por aquilo que carregam, por parecerem duros e serem afinal tão fracos:
— “natureza humana”.
Isto não é sobre saber mais mas sim sobre saber admitir que não sabemos assim tanto. Que partir dos conceitos “em si” não nos serve mais, que tudo quanto seja ir contra o império implica (continuar a) partir pedra aí, não desistir de pôr em causa tudo quanto tenha o sabor da totalização, da intemporalidade, da universalidade.
A pouco e pouco, vamos. Lançando, ainda assim, as nossas âncoras de vez em quando, porque ainda precisamos delas.
O meu primo interroga-se: será que alguma vez nos livraremos disto? — isto é, da linguagem enquanto sistema de abstração, do signo e do símbolo. Ele queria dizer: da mediação.
(Neste pátio só se fala de grandes questões e problemas — e que grandes conversas tínhamos com a nossa avó, que adorava sentir o anoitecer sentada nesta mesa de pedra, nos verões em que cá estava, e é a minha mãe que se lembra de a chamar, e a verdade é que nos fez companhia até ao fim da conversa).
Talvez não…, respondo ao meu primo. Mas hoje acordo com outras ideias. Outro prisma. Somos habituadas a achar que palavras são coisas que usamos para substituir as coisas que nomeiam. Mas podemos ainda falar de linguagem quando já não é preciso explicar nada? Quando podemos usar as palavras apenas para desenhar? Os conceitos, que as palavras fazem o favor de tornar circuláveis, são um meio, não um fim. Um dos meios ao nosso dispor para construir mundo — “a constituição em força de uma sensibilidade”. O projeto de fingir que “as coisas são como são” fez de tudo para ocultar a plasticidade dos conceitos, da linguagem, das palavras. Para construir uma cosmovisão dominante que irradia do centro, nas suas várias versões, obcecada com as essências.
Tendo nascido dentro da supremacia da linguagem (semântica, em particular), como se ela fosse a nossa única possibilidade de ligação ao mundo, menosprezamos (com frustração) quando, por vezes, tantas vezes, as palavras não nos satisfazem, não nos servem. É uma dependência. E não se pode dizer que esteja assim tão à mão a sabedoria dos pós-estruturalistas, na redoma que construíram à volta das mesmas palavras que tentaram escancarar. Não podendo “escapar-lhes” (às palavras, digo) por completo, nem culpá-las por fazerem aquilo que é suposto — regular distâncias — talvez, se nos empenharmos em aceder a outros modos de sentir, conhecer e comunicar… “uma disciplina da atenção”. Isto é algo que se treina e que se pode transmitir.
Talvez seja aí que começamos a “falar” por telepatia e a ver o futuro. Isto é, a ver todos os tempos agora, em vez de sentir o presente como um momento enlatado. A não duvidar da presença do que não se agarra. Aprender a confiar; ensinar o corpo (dos pés à cabeça) a escutar(-se), a deixar-se atravessar, a deixá-lo guiar-nos.
E a pouco e pouco, quando tudo começa a ser processado enquanto fluxo, processo, relação, é aí que se começa a abrir mão — do conceito como base, do “mas isto é objetivo” quando é constructo, da ciência como verdade, do não pôr em causa os nomes. E aí a comunicação flui de outra maneira, porque deixa de ser sobre discordar e passa a ser sobre multiplicar hipóteses. Onde as palavras talvez descubram usos imprevisíveis a toda hora e já não como exceção — seremos poetas, sem por isso nos distinguirmos.
E esta mania de achar que é humano o dom de codificar... Os pássaros, que me acordam todas as manhãs, hão-de ter os seus mecanismos de interpretação para distinguir os seus cantos uns dos outros. Qualquer pessoa que estude pássaros hoje, ainda para mais se o fizer com uma certa sensibilidade (contra o império), teria muito para se rir da nossa ignorância. E dos pássaros então, nem se fala.