Ontem acordei agitada. O prazo de entrega da tese aproxima-se, mas não consegui escrever nada, e ainda falta escrever um bom bocado. Tentei, sem sucesso, resistir à tentação pegajosa (como a de qualquer adição) de abrir as aplicações das redes sociais e ser sugada pelo doomscroll infinito enquanto as horas correm sem que eu as sinta, como se o meu corpo se transportasse para um plano onde não consigo mexer-me. Apenas a minha mão direita, que entretanto começou a doer-me, para me avisar que talvez seja melhor parar, enquanto a esquerda leva o cigarro à boca, outro vício. A dor traz-nos ao corpo com a urgência de um repto: ai! Dói a mão mas não é só a mão. No ecrã, o scroll vai revelando o rol de horrores pelo mundo fora. O sangue palestiniano que continua a escorrer às mãos de Israel, a escalada do discurso militarista nas bocas e canetas dos guardiões do poder imperial, a repressão e a perseguição policial e estatal dos e aos movimentos pela libertação da Palestina, a cumplicidade obscena dos meios de comunicação mainstream com a normalização do genocídio e a violência sistémica que serve os donos do Capital, a proliferação galopante de políticas xenófobas, machistas e transfóbicas, a destruição climática, sem freio. A nível local, os despejos e a crise da habitação, a erosão do setor público e as ameaças aos direitos laborais, a luta diária pela sobrevivência, a humilhante subserviência nacional ao europeísmo psicopata e a colaboração vergonhosa com o governo genocida de Israel, a promiscuidade do poder político no geral, e todo o triste circo mediático pré-eleitoral. A desilusão, a desesperança, o desgaste. Tudo isto dói, dói, dói.
No meio de tudo, apercebo-me também, com cada vez maior clareza, de que nenhum partido à esquerda do PS parece capaz de se afirmar contra a extrema "direitização" em curso, o que me preocupa tanto ou mais do que ela. E é com um sabor cada vez mais amargo na boca que antecipo o dia de me dirigir às urnas para votar naquele que, ainda assim, me continua a parecer, muito de longe, "o melhor". Mas este texto não é bem sobre política eleitoral, muito menos uma espécie de pseudo-apelo partidário ao voto, como aquele que, nas últimas legislativas, decidi escrever e partilhar, e que era também uma tentativa de explicar aquilo que, para mim, significava "ser de esquerda". Conjugo o verbo no passado pois, embora o ponto principal do texto fosse sobre a indissociabilidade entre a luta contra o capitalismo e o imperialismo, e a possibilidade de justiça social — na qual continuo a acreditar —, a cada dia que passa desde esse texto e essas eleições, tenho vindo a rever algumas das crenças nas quais me baseava para defender, ainda assim, algo como uma "união" da(s) esquerda(s). Esta revisão impôs-se, a pouco e pouco, como movimento necessário à tentativa de responder a uma pergunta que parece assombrar todas as pessoas que, hoje, se identificam com "a esquerda": o que podemos e precisamos de fazer para combater e travar o fascismo?
Quando as perguntas nos assombram, passamos muito tempo com elas. E quando somos constantemente expropriadas de agência sobre o rumo das nossas vidas e das nossas sociedades, incrédulas perante as desgraças ao longe e de perto, mergulhadas em angústia existencial e impotência, esmagadas pelo ritmo incessante dos dias e dos problemas, na perspetiva de que as coisas ainda podem (ou só parecem) piorar, estas perguntas servem-nos como uma espécie de bússola no dia-a-dia. A simples colocação da pergunta já nos impele a tomar uma série de decisões, intromete-se nos nossos gestos quotidianos, nas nossas relações com os outros, connosco, com o que nos rodeia, leva-nos a sítios, mesmo que a curtas distâncias. Formular a pergunta, uma pergunta que, ainda para mais, se coloca sobre “o que pode ser”, já faz parte da prática que se compromete com a procura de uma resposta que se vai dando. Claro que, como acontece com todas as perguntas de grande monta, como esta, nunca existe só uma resposta possível, e isto é algo que eu sempre quis defender quando se trata de imaginar um modelo de sociedade diferente e as diferentes formas de o ir concretizando. Este era um lugar a partir do qual eu “sonhava” com uma união da(s) esquerda(s). Apesar de todas as diferenças, havia qualquer coisa sobre a qual existiria uma concordância de base, a partir da qual uma pluralidade de hipóteses se poderia ir desenhando e multiplicando, em diálogo. E isto foi e vai acontecendo, apesar de tudo. (Esta consciencialização excluía, de raiz, toda a direita, a partir do momento em que se tornava óbvio que a direita política, no seu todo, defende tudo aquilo que, ideológica, económica e socialmente, é preciso destruir para que algo parecido com justiça, igualdade e emancipação coletiva se concretize. Esta crença não só não mudou como se torna cada vez mais inabalável).
Quando eu era pequena, o primeiro nível da minha formação política deu-se no campo dos “valores”, em circunstâncias de grande privilégio (económico e afetivo). "Toda a gente deve ter os mesmos direitos e é preciso lutar para que assim seja. Se temos a mais, devemos dar a quem tem menos. Não há nada que façamos realmente sozinhas. A desigualdade é injusta. A nossa liberdade implica sempre a liberdade do outro. Não devemos descriminar alguém só porque é diferente de nós." Eram máximas que eu ouvia com regularidade, especialmente vindas da minha avó materna, a minha querida avó Joana (que era, no fundo, uma social-democrata humanista, e votava sempre no PS, na continuidade do legado do seu pai). Mas com ela, não era nunca só o "ouvir-dizer" como também o "ver-fazer", e ela fazia muito, fez muito. A par das suas firmes posições políticas, participação ativa e pública na luta por justiça social, pelos direitos das mulheres e das crianças, contra a violência doméstica e a desigualdade salarial, a minha avó tinha um espírito generoso, ajudava toda a gente, sacrificava-se pelos outros, vivia com essa responsabilidade, muitas vezes às custas de si própria, o que por vezes chocava com o seu orgulho. Em parte, isto era também o seu lado cristão, assumido e nutrido numa relação simbiótica entre os seus valores políticos e o "amor ao próximo" que Jesus lhe ensinava. Quando dormia em casa dela, rezávamos sempre uma pequena oração juntas e aos domingos levava-me, com o meu avô, às missas da Igreja do Rato, conhecida por juntar, até hoje, "crentes de esquerda", comprometidos com uma forma de viver a religião ao serviço de um "bem" coletivo maior.
Enfim, uma herança que inculcou em mim um conjunto de crenças profundas, algumas das quais, ao longo do tempo, fui colocando em perspetiva autocrítica (o implícito white saviorism que as acompanhava, bem como todo o lado problemático desse humanismo "caridoso"). À medida que fui crescendo, moldada pelas experiências que ia tendo, fui ganhando maior consciência relativamente a muitas das contradições que essas crenças carregavam e que, progressivamente, iam chocando com a possibilidade de um pensamento político mais radical com o qual, cada vez mais, me ia identificando. Ao mesmo tempo, estas realizações produziam uma hiper consciencialização acerca do meu próprio privilégio, e levavam-me a estados de profundo conflito interno, entre estar grata por tudo aquilo que esse privilégio me permitiu e continua a permitir, ter vontade de o usar de uma forma que não me beneficia apenas a mim, ter medo de me apropriar, inevitavelmente, de certas coisas e lugares através dele, rejeitá-lo como forma de dar lugar ao outro, achar ridículo dar-lhe essa importância, achar-me uma fraude e uma hipócrita por criticar aquilo que também me beneficia, duvidar se essa crítica pode alguma vez ser feita de um lugar de privilégio, etc., etc. Estes conflitos acompanham-me até hoje e marcam todo o meu envolvimento político e com a política, em tudo o que faço, fazendo-me sempre pôr sempre em causa a legitimidade de produzir um discurso politizado sobre x assunto a partir deste lugar, e o modo como o faço, a voz que uso para o fazer, a par de uma genuína vontade e sentido de dever para fazer alguma coisa, e acreditando sempre que alguma coisa tem de ser feita para que as coisas mudem. É preciso que as coisas mudem, e isto tem guiado o meu percurso, as minhas escolhas, as lutas a que me dedico, as pessoas a quem me junto.
Neste percurso que tem sido a minha vida, e quanto mais me vou politizando e aprendendo, vivendo, lendo, observando, partilhando, cada vez mais o meu foco se dirige para a relação entre as crenças que moldam o pensamento das pessoas (e, por extensão, os seus comportamentos e escolhas), e aquilo que é preciso para que essas crenças se alterem e a mudança aconteça. Desconstrução, transformação, reconfiguração, ressignificação, tornaram-se palavras de ordem, movimentos que guiam toda a prática, todo o fazer. Pelo menos quatro coisas se iam revelando através destes movimentos e do fio que os liga: (1) eles produzem-se pela e na materialidade, no contexto de determinadas condições materiais; (2) eles constituem-se apenas enquanto processos que, nesse sentido, deixam sempre em aberto o que pode vir; (3) eles são sempre processos que nos envolvem relacional e coletivamente; (4) eles exigem sempre, inevitavelmente, um processo de luto — tanto quanto o luto já é, em si, um processo de transformação e ressignificação (de algo que se perdeu). A mudança implica sempre algum tipo de perda. Quando se trata de crenças, "ideias" que supostamente nos fundam enquanto seres, em torno das quais construímos todo um complexo sistema, com o qual identificamos toda a nossa subjetividade e atribuímos sentido às coisas, ficar sem elas é quase como ficar sem chão, e não é algo que aconteça facilmente nem sem uma boa crise existencial.
Quem é que se quer pôr em causa desta maneira? Que medo! Quase sempre, estas crises são desencadeadas por algo que nos é "externo", alguma coisa que acontece fora do nosso controlo e que não conseguimos integrar no nosso sistema de crenças. Através das nossas experiências e relações, não temos como evitar ser moldadas por elas, negociando, constantemente, os contornos de quem somos. Por outro lado, numa cultura estruturada pelo individualismo, somos mais facilmente afetadas por algo que nos acontece diretamente do que por algo que acontece "aos outros"... Ainda assim, o momento histórico em que nos encontramos, o genocídio na Palestina, o crescimento da extrema-direita e a normalização de regimes assumidamente fascistas e xenófobos por toda a parte, o aumento da desigualdade abissal, a contínua destruição do planeta (e tudo o mais...) estão a incitar uma resposta coletiva que põe em causa esse individualismo e que impõe uma visão interseccional das opressões e das lutas, em que nunca foi tão claro que não é por algo acontecer longe que não tem a ver connosco... Ao mesmo tempo, esta constatação revela, de forma cada vez mais inegável, a necessidade de uma transformação global, estrutural e radical deste estado de coisas.
Perante isto, a crença de que essa transformação é compatível com o nosso modelo de "democracia" liberal está a desfazer-se aos pedaços. Não é, nunca foi, muito pelo contrário. Qualquer movimento "de esquerda" que hoje não se comprometa com isto, e que continue a falar do fascismo como se o fascismo fosse uma ameaça que vem dos escombros da história, para destruir a "democracia" tal como a conhecemos, e não como um dos instrumentos essenciais do capitalismo imperialista para perpetuar a sua própria sobrevivência e regimes de exploração, está, na verdade, a contribuir para adiar o inadiável, e a tentar manter o que não pode ser mantido. Ou então, tem de admitir que o seu objetivo não é realmente combater ou travar o fascismo mas mantê-lo apenas como realidade dos outros, no hemisfério de lá, que precisamos de continuar a explorar e a oprimir, e às custas de quem nos podemos orgulhar do nosso mundo "civilizado". Independentemente de haver conjunturas relativamente "melhores" ou "piores" — e obviamente isto não é subestimável (e também é por isso que, apesar de tudo, vou votar...) — não há como escapar à necessidade de abandonar a crença de que este modelo é reformável se estivermos realmente comprometidas com a justiça social, a justiça climática, a justiça racial...o fim do capitalismo. Porque, se for esse o compromisso, não há conciliação possível com quem quer manter a ilusão de que o fascismo é simplesmente algo que pessoas "más" querem impor contra o "bem". As "democracias" liberais ocidentais sempre coexistiram com e beneficiaram do fascismo (= capitalismo = imperialismo = colonialismo). [*].
Mas então, estarei a insinuar que, ao contrário do que eu tinha dito antes, só existe uma resposta possível à pergunta o que podemos e precisamos de fazer para combater e travar o fascismo? Não. Mas cada vez mais acho que, assim como é preciso excluir a direita reacionária (da mais "liberal" à mais "conservadora"), é preciso ir excluindo também a esquerda moderada, social-democrata, reformista, nacionalista e europeísta como um entrave ao processo de transformação (local e global) que se impõe, ou melhor, é preciso que o movimento de esquerda se radicalize e cresça a partir dessa radicalização, que recupere os seus instrumentos de poder, e saia da sua posição ingrata de "guardiões do bom senso" e da "ordem" no meio do caos. É aí que se abre um mar de possibilidades. De processos, reflexões e práticas que se podem imaginar e concretizar, e que precisam da força de uma mudança coletivamente pensada e organizada contra a imobilização que nos é imposta e a ilusão de que a nossa participação política pouco mais pode para além do voto, dentro dos parâmetros hiper limitados das opções que existem e que implica sempre aceitar uma estrutura subserviente ao sistema capitalista. Isso é "democracia"? Para quem? Nada disso se faz da noite para o dia, nem com certezas sobre onde se irá chegar, muito menos sozinhas ou dependendo simplesmente da nossa "vontade". É, antes de mais, algo que parte de uma realidade que se impõe, "expressão geral das condições efetivas de uma luta de classes que existe, de um movimento histórico que se desenvolve diante dos olhos" [**], e: um processo que envolve o luto das nossas crenças num sistema que (nos) continua a falhar por default.
Porque mesmo quando estamos numa posição de relativo privilégio, ou celebramos justamente as pequenas (e mesmo grandes) vitórias que se alcançam, ainda assim, dentro desta conjuntura, levando-nos a pensar que isto assim até poderia funcionar, o fascismo vai continuar a encontrar formas de chegar à nossa porta. Se não for à nossa, será à do lado — e que mundo "livre" é esse? Existe outra forma de viver e de ser. Uma que tem nome mas que ainda não se experimentou (ao contrário do que, por vezes, nos querem fazer acreditar), que já está formulada, existe, falta fazer. A promessa de um espectro que dança nos nossos sonhos pela libertação, e que vive no gesto de atirar contra os tanques do colonizador, no desejo de abolir as prisões, e no fluxo violento do movimento em massa contra os acumuladores da riqueza. Na fagulha que leva à formação do sindicato, no muro que se salta para fazer a ocupa e no bate-pé contra o senhorio. E também na canção que se canta-juntas e na diluição da distância que nos separa do gato, do lagarto, da árvore. Em casa, na escola, no trabalho, na rua... Claro que isso acontece, também, lutando por condições para que a luta se faça. No passa-a-palavra e no corta-a-palavra; no abre-caminho e no veda-caminho, nas reivindicações, nas apropriações e expropriações. Nada disto se faz e já está, apenas se pode ir fazendo, e há que criar estratégias, mas é preciso um corte, uma brecha...
Para acreditar que outro sistema é possível e, mais importante que tudo, agir sobre isso, por isso e para isso, temos de confiar naquilo que ainda não sabemos muito bem o que pode ser realmente e, ao mesmo tempo, ir rompendo com tudo o que impede que sequer um dia seja, mesmo (e sobretudo) sem saber se estaremos cá para o testemunhar. Isto é algo que tem de acontecer material, processual, relacional e coletivamente, algo que não tem como não envolver todo o nosso sistema de crenças e a nossa identificação com elas, na abertura que o luto convoca quando, em qualquer processo de transformação, temos de deixar algo para trás. O luto é uma emoção normalmente indesejada, porque temos medo de sentir dor. Mas essas são as pequenas revoluções que nos reconfiguram, que nos conduzem ao outro (lado), o apelo de qualquer crise, a dor que nos conduz à travessia. Nessa travessia, talvez possamos descobrir que, para nossa supresa, não deixámos de ser, quando perdemos algo que supostamente fazia parte de nós, e que não há nenhum eu que se aguente que não seja já, como condição de ser, sempre plural e dinâmico. Essas perdas não se superam nem se suprimem, elas ganham a forma de outra coisa, preservam-se enquanto outras no processo. E se é verdade que qualquer revolução é um processo, ela não se faz sem que haja algum tipo de ruptura.
"É preciso falar do fantasma, inclusive ao fantasma e com ele, uma vez que nenhuma ética, nenhuma política, revolucionária ou não, parece possível e pensável e justa, se não reconhecer como seu princípio o respeito por estes outros que não são mais, ou por estes outros que não estão ainda aí, presentemente vivos, estejam eles já mortos ou não tenham ainda nascido. Nenhuma justiça (...) parece possível ou pensável sem o princípio de alguma responsabilidade, para além de todo o presente vivo, naquilo que disjunta o presente vivo, diante dos fantasmas daqueles que ainda não nasceram ou dos que já morreram, vítimas ou não de guerras, de violências políticas ou outras, de exterminações nacionalistas, racistas, colonialistas, sexistas ou outras, das opressões do imperialismo capitalista ou de todas as formas do totalitarismo. Sem esta não-contemporaneidade a si do presente vivo, sem o que secretamente o desajusta, sem esta responsabilidade e este respeito pela justiça em relação àqueles que não estão aí, àqueles que não estão mais ou não estão ainda presentes e vivos, que sentido haveria em colocar a questão 'onde'?, 'onde amanhã'?" [***]
[*] Sobre isto, recomendo a leitura do texto "Anti-fascismo — Fórmula Confusionista", publicado pelo Coletivo Ruptura.
[**] Manifesto Comunista, Karl Marx e Friedrich Engels.
[***] Os Espectros de Marx, Jacques Derrida.
