25 março 2025

# fazer o luto das nossas crenças: as pequenas revoluções




Ontem acordei agitada. O prazo de entrega da tese aproxima-se, mas não consegui escrever nada, e ainda falta escrever um bom bocado. Tentei, sem sucesso, resistir à tentação pegajosa (como a de qualquer adição) de abrir as aplicações das redes sociais e ser sugada pelo doomscroll infinito enquanto as horas correm sem que eu as sinta, como se o meu corpo se transportasse para um plano onde não consigo mexer-me. Apenas a minha mão direita, que entretanto começou a doer-me, para me avisar que talvez seja melhor parar, enquanto a esquerda leva o cigarro à boca, outro vício. A dor traz-nos ao corpo com a urgência de um repto: ai! Dói a mão mas não é só a mão. No ecrã, o scroll vai revelando o rol de horrores pelo mundo fora. O sangue palestiniano que continua a escorrer às mãos de Israel, a escalada do discurso militarista nas bocas e canetas dos guardiões do poder imperial, a repressão e a perseguição policial e estatal dos e aos movimentos pela libertação da Palestina, a cumplicidade obscena dos meios de comunicação mainstream com a normalização do genocídio e a violência sistémica que serve os donos do Capital, a proliferação galopante de políticas xenófobas, machistas e transfóbicas, a destruição climática, sem freio. A nível local, os despejos e a crise da habitação, a erosão do setor público e as ameaças aos direitos laborais, a luta diária pela sobrevivência, a humilhante subserviência nacional ao europeísmo psicopata e a colaboração vergonhosa com o governo genocida de Israel, a promiscuidade do poder político no geral, e todo o triste circo mediático pré-eleitoral. A desilusão, a desesperança, o desgaste. Tudo isto dói, dói, dói.

No meio de tudo, apercebo-me também, com cada vez maior clareza, de que nenhum partido à esquerda do PS parece capaz de se afirmar contra a extrema "direitização" em curso, o que me preocupa tanto ou mais do que ela. E é com um sabor cada vez mais amargo na boca que antecipo o dia de me dirigir às urnas para votar naquele que, ainda assim, me continua a parecer, muito de longe, "o melhor". Mas este texto não é bem sobre política eleitoral, muito menos uma espécie de pseudo-apelo partidário ao voto, como aquele que, nas últimas legislativas, decidi escrever e partilhar, e que era também uma tentativa de explicar aquilo que, para mim, significava "ser de esquerda". Conjugo o verbo no passado pois, embora o ponto principal do texto fosse sobre a indissociabilidade entre a luta contra o capitalismo e o imperialismo, e a possibilidade de justiça social — na qual continuo a acreditar —, a cada dia que passa desde esse texto e essas eleições, tenho vindo a rever algumas das crenças nas quais me baseava para defender, ainda assim, algo como uma "união" da(s) esquerda(s). Esta revisão impôs-se, a pouco e pouco, como movimento necessário à tentativa de responder a uma pergunta que parece assombrar todas as pessoas que, hoje, se identificam com "a esquerda": o que podemos e precisamos de fazer para combater e travar o fascismo?

Quando as perguntas nos assombram, passamos muito tempo com elas. E quando somos constantemente expropriadas de agência sobre o rumo das nossas vidas e das nossas sociedades, incrédulas perante as desgraças ao longe e de perto, mergulhadas em angústia existencial e impotência, esmagadas pelo ritmo incessante dos dias e dos problemas, na perspetiva de que as coisas ainda podem (ou só parecem) piorar, estas perguntas servem-nos como uma espécie de bússola no dia-a-dia. A simples colocação da pergunta já nos impele a tomar uma série de decisões, intromete-se nos nossos gestos quotidianos, nas nossas relações com os outros, connosco, com o que nos rodeia, leva-nos a sítios, mesmo que a curtas distâncias. Formular a pergunta, uma pergunta que, ainda para mais, se coloca sobre “o que pode ser”, já faz parte da prática que se compromete com a procura de uma resposta que se vai dando. Claro que, como acontece com todas as perguntas de grande monta, como esta, nunca existe só uma resposta possível, e isto é algo que eu sempre quis defender quando se trata de imaginar um modelo de sociedade diferente e as diferentes formas de o ir concretizando. Este era um lugar a partir do qual eu “sonhava” com uma união da(s) esquerda(s). Apesar de todas as diferenças, havia qualquer coisa sobre a qual existiria uma concordância de base, a partir da qual uma pluralidade de hipóteses se poderia ir desenhando e multiplicando, em diálogo. E isto foi e vai acontecendo, apesar de tudo. (Esta consciencialização excluía, de raiz, toda a direita, a partir do momento em que se tornava óbvio que a direita política, no seu todo, defende tudo aquilo que, ideológica, económica e socialmente, é preciso destruir para que algo parecido com justiça, igualdade e emancipação coletiva se concretize. Esta crença não só não mudou como se torna cada vez mais inabalável).

Quando eu era pequena, o primeiro nível da minha formação política deu-se no campo dos “valores”, em circunstâncias de grande privilégio (económico e afetivo). "Toda a gente deve ter os mesmos direitos e é preciso lutar para que assim seja. Se temos a mais, devemos dar a quem tem menos. Não há nada que façamos realmente sozinhas. A desigualdade é injusta. A nossa liberdade implica sempre a liberdade do outro. Não devemos descriminar alguém só porque é diferente de nós." Eram máximas que eu ouvia com regularidade, especialmente vindas da minha avó materna, a minha querida avó Joana (que era, no fundo, uma social-democrata humanista, e votava sempre no PS, na continuidade do legado do seu pai). Mas com ela, não era nunca só o "ouvir-dizer" como também o "ver-fazer", e ela fazia muito, fez muito. A par das suas firmes posições políticas, participação ativa e pública na luta por justiça social, pelos direitos das mulheres e das crianças, contra a violência doméstica e a desigualdade salarial, a minha avó tinha um espírito generoso, ajudava toda a gente, sacrificava-se pelos outros, vivia com essa responsabilidade, muitas vezes às custas de si própria, o que por vezes chocava com o seu orgulho. Em parte, isto era também o seu lado cristão, assumido e nutrido numa relação simbiótica entre os seus valores políticos e o "amor ao próximo" que Jesus lhe ensinava. Quando dormia em casa dela, rezávamos sempre uma pequena oração juntas e aos domingos levava-me, com o meu avô, às missas da Igreja do Rato, conhecida por juntar, até hoje, "crentes de esquerda", comprometidos com uma forma de viver a religião ao serviço de um "bem" coletivo maior.

Enfim, uma herança que inculcou em mim um conjunto de crenças profundas, algumas das quais, ao longo do tempo, fui colocando em perspetiva autocrítica (o implícito white saviorism que as acompanhava, bem como todo o lado problemático desse humanismo "caridoso"). À medida que fui crescendo, moldada pelas experiências que ia tendo, fui ganhando maior consciência relativamente a muitas das contradições que essas crenças carregavam e que, progressivamente, iam chocando com a possibilidade de um pensamento político mais radical com o qual, cada vez mais, me ia identificando. Ao mesmo tempo, estas realizações produziam uma hiper consciencialização acerca do meu próprio privilégio, e levavam-me a estados de profundo conflito interno, entre estar grata por tudo aquilo que esse privilégio me permitiu e continua a permitir, ter vontade de o usar de uma forma que não me beneficia apenas a mim, ter medo de me apropriar, inevitavelmente, de certas coisas e lugares através dele, rejeitá-lo como forma de dar lugar ao outro, achar ridículo dar-lhe essa importância, achar-me uma fraude e uma hipócrita por criticar aquilo que também me beneficia, duvidar se essa crítica pode alguma vez ser feita de um lugar de privilégio, etc., etc. Estes conflitos acompanham-me até hoje e marcam todo o meu envolvimento político e com a política, em tudo o que faço, fazendo-me sempre pôr sempre em causa a legitimidade de produzir um discurso politizado sobre x assunto a partir deste lugar, e o modo como o faço, a voz que uso para o fazer, a par de uma genuína vontade e sentido de dever para fazer alguma coisa, e acreditando sempre que alguma coisa tem de ser feita para que as coisas mudem. É preciso que as coisas mudem, e isto tem guiado o meu percurso, as minhas escolhas, as lutas a que me dedico, as pessoas a quem me junto.

Neste percurso que tem sido a minha vida, e quanto mais me vou politizando e aprendendo, vivendo, lendo, observando, partilhando, cada vez mais o meu foco se dirige para a relação entre as crenças que moldam o pensamento das pessoas (e, por extensão, os seus comportamentos e escolhas), e aquilo que é preciso para que essas crenças se alterem e a mudança aconteça. Desconstrução, transformação, reconfiguração, ressignificação, tornaram-se palavras de ordem, movimentos que guiam toda a prática, todo o fazer. Pelo menos quatro coisas se iam revelando através destes movimentos e do fio que os liga: (1) eles produzem-se pela e na materialidade, no contexto de determinadas condições materiais; (2) eles constituem-se apenas enquanto processos que, nesse sentido, deixam sempre em aberto o que pode vir; (3) eles são sempre processos que nos envolvem relacional e coletivamente; (4) eles exigem sempre, inevitavelmente, um processo de luto — tanto quanto o luto já é, em si, um processo de transformação e ressignificação (de algo que se perdeu). A mudança implica sempre algum tipo de perda. Quando se trata de crenças, "ideias" que supostamente nos fundam enquanto seres, em torno das quais construímos todo um complexo sistema, com o qual identificamos toda a nossa subjetividade e atribuímos sentido às coisas, ficar sem elas é quase como ficar sem chão, e não é algo que aconteça facilmente nem sem uma boa crise existencial. 

Quem é que se quer pôr em causa desta maneira? Que medo! Quase sempre, estas crises são desencadeadas por algo que nos é "externo", alguma coisa que acontece fora do nosso controlo e que não conseguimos integrar no nosso sistema de crenças. Através das nossas experiências e relações, não temos como evitar ser moldadas por elas, negociando, constantemente, os contornos de quem somos. Por outro lado, numa cultura estruturada pelo individualismo, somos mais facilmente afetadas por algo que nos acontece diretamente do que por algo que acontece "aos outros"... Ainda assim, o momento histórico em que nos encontramos, o genocídio na Palestina, o crescimento da extrema-direita e a normalização de regimes assumidamente fascistas e xenófobos por toda a parte, o aumento da desigualdade abissal, a contínua destruição do planeta (e tudo o mais...) estão a incitar uma resposta coletiva que põe em causa esse individualismo e que impõe uma visão interseccional das opressões e das lutas, em que nunca foi tão claro que não é por algo acontecer longe que não tem a ver connosco... Ao mesmo tempo, esta constatação revela, de forma cada vez mais inegável, a necessidade de uma transformação global, estrutural e radical deste estado de coisas. 

Perante isto, a crença de que essa transformação é compatível com o nosso modelo de "democracia" liberal está a desfazer-se aos pedaços. Não é, nunca foi, muito pelo contrário. Qualquer movimento "de esquerda" que hoje não se comprometa com isto, e que continue a falar do fascismo como se o fascismo fosse uma ameaça que vem dos escombros da história, para destruir a "democracia" tal como a conhecemos, e não como um dos instrumentos essenciais do capitalismo imperialista para perpetuar a sua própria sobrevivência e regimes de exploração, está, na verdade, a contribuir para adiar o inadiável, e a tentar manter o que não pode ser mantido. Ou então, tem de admitir que o seu objetivo não é realmente combater ou travar o fascismo mas mantê-lo apenas como realidade dos outros, no hemisfério de lá, que precisamos de continuar a explorar e a oprimir, e às custas de quem nos podemos orgulhar do nosso mundo "civilizado". Independentemente de haver conjunturas relativamente "melhores" ou "piores" — e obviamente isto não é subestimável (e também é por isso que, apesar de tudo, vou votar...) — não há como escapar à necessidade de abandonar a crença de que este modelo é reformável se estivermos realmente comprometidas com a justiça social, a justiça climática, a justiça racial...o fim do capitalismo. Porque, se for esse o compromisso, não há conciliação possível com quem quer manter a ilusão de que o fascismo é simplesmente algo que pessoas "más" querem impor contra o "bem". As "democracias" liberais ocidentais sempre coexistiram com e beneficiaram do fascismo (= capitalismo = imperialismo = colonialismo). [*].

Mas então, estarei a insinuar que, ao contrário do que eu tinha dito antes, só existe uma resposta possível à pergunta o que podemos e precisamos de fazer para combater e travar o fascismo? Não. Mas cada vez mais acho que, assim como é preciso excluir a direita reacionária (da mais "liberal" à mais "conservadora"), é preciso ir excluindo também a esquerda moderada, social-democrata, reformista, nacionalista e europeísta como um entrave ao processo de transformação (local e global) que se impõe, ou melhor, é preciso que o movimento de esquerda se radicalize e cresça a partir dessa radicalização, que recupere os seus instrumentos de poder, e saia da sua posição ingrata de "guardiões do bom senso" e da "ordem" no meio do caos. É aí que se abre um mar de possibilidades. De processos, reflexões e práticas que se podem imaginar e concretizar, e que precisam da força de uma mudança coletivamente pensada e organizada contra a imobilização que nos é imposta e a ilusão de que a nossa participação política pouco mais pode para além do voto, dentro dos parâmetros hiper limitados das opções que existem e que implica sempre aceitar uma estrutura subserviente ao sistema capitalista. Isso é "democracia"? Para quem? Nada disso se faz da noite para o dia, nem com certezas sobre onde se irá chegar, muito menos sozinhas ou dependendo simplesmente da nossa "vontade". É, antes de mais, algo que parte de uma realidade que se impõe, "expressão geral das condições efetivas de uma luta de classes que existe, de um movimento histórico que se desenvolve diante dos olhos" [**], e: um processo que envolve o luto das nossas crenças num sistema que (nos) continua a falhar por default

Porque mesmo quando estamos numa posição de relativo privilégio, ou celebramos justamente as pequenas (e mesmo grandes) vitórias que se alcançam, ainda assim, dentro desta conjuntura, levando-nos a pensar que isto assim até poderia funcionar, o fascismo vai continuar a encontrar formas de chegar à nossa porta. Se não for à nossa, será à do lado — e que mundo "livre" é esse? Existe outra forma de viver e de ser. Uma que tem nome mas que ainda não se experimentou (ao contrário do que, por vezes, nos querem fazer acreditar), que já está formulada, existe, falta fazer. A promessa de um espectro que dança nos nossos sonhos pela libertação, e que vive no gesto de atirar contra os tanques do colonizador, no desejo de abolir as prisões, e no fluxo violento do movimento em massa contra os acumuladores da riqueza. Na fagulha que leva à formação do sindicato, no muro que se salta para fazer a ocupa e no bate-pé contra o senhorio. E também na canção que se canta-juntas e na diluição da distância que nos separa do gato, do lagarto, da árvore. Em casa, na escola, no trabalho, na rua... Claro que isso acontece, também, lutando por condições para que a luta se faça. No passa-a-palavra e no corta-a-palavra; no abre-caminho e no veda-caminho, nas reivindicações, nas apropriações e expropriações. Nada disto se faz e já está, apenas se pode ir fazendo, e há que criar estratégias, mas é preciso um corte, uma brecha...

Para acreditar que outro sistema é possível e, mais importante que tudo, agir sobre isso, por isso e para isso, temos de confiar naquilo que ainda não sabemos muito bem o que pode ser realmente e, ao mesmo tempo, ir rompendo com tudo o que impede que sequer um dia seja, mesmo (e sobretudo) sem saber se estaremos cá para o testemunhar. Isto é algo que tem de acontecer material, processual, relacional e coletivamente, algo que não tem como não envolver todo o nosso sistema de crenças e a nossa identificação com elas, na abertura que o luto convoca quando, em qualquer processo de transformação, temos de deixar algo para trás. O luto é uma emoção normalmente indesejada, porque temos medo de sentir dor. Mas essas são as pequenas revoluções que nos reconfiguram, que nos conduzem ao outro (lado), o apelo de qualquer crise, a dor que nos conduz à travessia. Nessa travessia, talvez possamos descobrir que, para nossa supresa, não deixámos de ser, quando perdemos algo que supostamente fazia parte de nós, e que não há nenhum eu que se aguente que não seja já, como condição de ser, sempre plural e dinâmico. Essas perdas não se superam nem se suprimem, elas ganham a forma de outra coisa, preservam-se enquanto outras no processo. E se é verdade que qualquer revolução é um processo, ela não se faz sem que haja algum tipo de ruptura.


"É preciso falar do fantasma, inclusive ao fantasma e com ele, uma vez que nenhuma ética, nenhuma política, revolucionária ou não, parece possível e pensável e justa, se não reconhecer como seu princípio o respeito por estes outros que não são mais, ou por estes outros que não estão ainda aí, presentemente vivos, estejam eles já mortos ou não tenham ainda nascido. Nenhuma justiça (...) parece possível ou pensável sem o princípio de alguma responsabilidade, para além de todo o presente vivo, naquilo que disjunta o presente vivo, diante dos fantasmas daqueles que ainda não nasceram ou dos que já morreram, vítimas ou não de guerras, de violências políticas ou outras, de exterminações nacionalistas, racistas, colonialistas, sexistas ou outras, das opressões do imperialismo capitalista ou de todas as formas do totalitarismo. Sem esta não-contemporaneidade a si do presente vivo, sem o que secretamente o desajusta, sem esta responsabilidade e este respeito pela justiça em relação àqueles que não estão aí, àqueles que não estão mais ou não estão ainda presentes e vivos, que sentido haveria em colocar a questão 'onde'?, 'onde amanhã'?" [***]


 

[*] Sobre isto, recomendo a leitura do texto "Anti-fascismo — Fórmula Confusionista", publicado pelo Coletivo Ruptura.

[**] Manifesto Comunista, Karl Marx e Friedrich Engels.

[***] Os Espectros de Marx, Jacques Derrida. 


05 março 2025

Anora, os óscares e o "sonho americano"




É fácil ser dismissive de opiniões que chocam com as nossas sob a premissa da incompreensão. Faço já o disclaimer de que não é desse lugar que pretendo partir, como se estivesse a insinuar que gostar ou não gostar de alguma coisa depende simplesmente de a "perceber" de uma determinada perspetiva. O interesse (e o prazer) em discutir com pessoas que não concordam connosco jaz também, aliás, na capacidade de constatar que a perspetiva "correta" não existe como um suposto fundo de verdade unívoco em relação ao qual podemos apenas ter opiniões in/compatíveis sobre as coisas. Neste momento específico da história, acho que isto é algo que precisamos de conseguir entranhar nas nossas cabeças... No entanto, dito isto, não consegui deixar de sentir que, em muitas das reações que tenho visto ao Anora, sobressai um desdém que considero ser fruto de uma leitura bastante superficial do filme.

Esse desdém parece-me ser ainda mais superficial quando enquadrado numa reação de outrage ao facto de o filme ter sido premiado com cinco óscares. Antes de mais, espanta-me que a maioria destas críticas se baseie na aceitação de que o circo hollywoodesco dos óscares deve ser o decreto final sobre a qualidade e validade artísticas do que é premiado. Se é absolutamente verdade que estas premiações (e os óscares mais do que qualquer outra) têm um impacto inegável na determinação do valor cultural e artístico daquilo que se decide premiar ou não, a nível mainstream, e na projeção e/ou exclusão de narrativas e ideias a uma escala massiva, com enormes implicações políticas, económicas e sociais, também é verdade que alinhar num discurso centrado no "devia ter ganho este em vez daquele" contribui para reforçar esse impacto através da exigência dessa validação específica, que já a valida enquanto tal. 

É importante continuar a criticar ativamente o modo como Hollywood e a Academia são, acima de tudo, instrumentos ideológicos da cultura e indústria mainstream para manipular a opinião pública e alimentar o sistema capitalista. Mas penso que essa crítica não se deve limitar a condenar e/ou aplaudir aquilo que é ou não premiado, que é ou não representado, mas deve também contribuir para deslocar Hollywood como centro de autoridade e legitimidade para premiar e representar. Até porque exigir que os óscares sejam mais inclusivos e menos normativos, a nível do que é reconhecido ou excluído em tela, resulta muitas vezes (se não quase sempre) numa representatividade supérflua que se auto-normaliza em vez de se traduzir numa transformação significativa e produtiva. É essa, aliás, a economia da cultura mainstream: apropriação e exploração de contra-cultura(s), esvaziando-as da sua potência sociopolítica e radicalidade artística. Resumindo, não basta levar a margem para o centro. Mesmo que o aumento da representatividade de identidades e realidades marginalizadas na cultura mainstream tenha a sua importância, porque tem!, isso não é, em si, tudo o que podemos almejar quando criticamos o "sistema". Como se representa o que se representa é extremamente revelador. Além de que essa representatividade ou inclusividade normalmente têm um preço — não é nenhuma generosa e sincera cedência por parte de Hollywood ou da Academia, mas sim parte de uma estratégia de adaptação do seu programa (político, económico, cultural) que não ponha nunca em causa a sua legitimidade, a sua relevância e a sua acumulação de riqueza. 

Gosto de ver a cerimónia dos óscares porque é, de facto, um momento em que essas estratégias se tornam altamente visíveis. Este ano, o melhor exemplo disto foi provavelmente a premiação do documentário No Other Land, sobre a ocupação militar israelita em Masafer Yatta, na Palestina. Enquanto Israel continua a sua chacina, com o aval e o dinheiro dos EUA e das grandes nações europeias, o momento foi aplaudido pelas celebridades liberais americanas e, de uma forma geral, pelo público ocidental pró-Palestina (obviamente os sionistas não gostaram). Mas as vozes palestinianas que se têm ouvido sobre o caso são mais cautelosas e críticas, chamando a atenção para a dinâmica de normalização em causa e o custo que representa para a sua luta de libertação. Eu não vi o documentário, mas vi e ouvi o discurso de aceitação do óscar, por parte dos dois realizadores, Basel Adra e Yuval Abraham, e foi angustiante. Só o facto de ser uma co-produção palestiniana e israelita já denuncia o filme como produto de uma tentativa de neutralizar um brutal desequilíbrio de poder. O realizador israelita reforçou isto com o seu discurso, tentando sugerir uma falsa equivalência entre colonizador e colonizado que trai por completo as reivindicações fundamentais da resistência palestiniana. Hard watch: a fantasia do bom colonizador.

Ou seja, a narrativa dos óscares não se conta apenas através das premiações e dos filmes nomeados, efetivamente premiados e/ou não reconhecidos, mas através de um evento que tem lugar, que é pensado e desenhado de uma certa forma, e que inscreve o seu teor político naquilo que inclui, mas sobretudo no modo como inclui e naquilo que exclui dos contornos dessa inclusão. Uma bolha de realidade que tenta a todo o custo proteger-se da decadência de que é guardiã, atrás dos vestidos brilhantes e as piadas dos comediantes escolhidos para conduzir a noite.

Às vezes acontece que os filmes premiados são mesmo bons, inclusive num sentido transgressor. Eu acho que o Anora é um desses casos. Mas tenho as minhas teorias acerca das razões pelas quais este filme agradou tanto à Academia, para além de um mero reconhecimento do seu valor técnico e artístico. A satisfação de uma nostalgia por screw ball by the book, a personagem do "puto estúpido" ser um filho de oligarcas russos (o Conan O'Brien até fez uma piada frontal sobre isto, com uma alusão implícita ao Trump que "everybody loved"), mas também, eu acho, um excelente pretexto para glorificar, uma vez mais, a narrativa individualista do sonho americano.

Não escapou a ninguém que tenha estado atento aos óscares, mesmo não tendo visto o Anora, que quatro das suas cinco premiações tenham sido atribuídas a uma só e mesma pessoa (nunca a mesma pessoa tinha ganho tantos óscares na mesma noite pelo mesmo filme). Sean Baker escreveu, realizou e editou o filme, com o menor orçamento de todos os filmes nomeados para melhor filme (6 milhões). Aos olhos da Academia (e de muita gente que tem acompanhado o seu trabalho e carreira), Sean Baker é um perfeito herói do cinema dito independente ("o gajo faz tudo!"). Mas tenho a suspeita de que enchê-lo de óscares neste momento tem menos a ver com a valorização do conteúdo, substância e força emocional do seu filme, por parte da Academia, do que com uma estratégia capitalista para, mais uma vez, controlar a narrativa que quer impor. 

[post-edit: talvez o arraso do Anora nos óscares também tenha algo a ver com a quantidade de guito gasto na campanha de marketing...]

Tendo assistido à cerimónia, foi impossível não reparar num shift notório a nível daquilo que tem sido o foco do discurso em Hollywood em torno das questões "identitárias" para uma vangloriação da "força trabalhadora" por trás das câmeras. Claro que as celebs continuam a ser o centro das atenções, mas este ano notou-se um esforço específico para visibilizar uma certa imagem do "behind the scenes" que se sobrepôs ao protagonismo que a questão da representatividade (racial, de género, etc.) tem tido nos últimos anos. (Isto levou, inclusive, a que os comentadores portugueses tenham mencionado a "falta de teor político" da cerimónia. Mas, na verdade, parece-me ser uma estratégia profundamente política). A minha leitura é que isto é menos Hollywood a mancar-se da superficialidade das suas políticas de representatividade do que a antecipar-se à realização coletiva (em curso) de que o identitarismo tem sido eficazmente instrumentalizado pela cultura e indústria mainstream contra a possibilidade de uma luta anticapitalista efetiva. Numa altura em que, mais do que nunca, parece estar a haver uma consciencialização coletiva sobre como o capitalismo é o lugar de interseção de todas as opressões e desigualdades, em que a concentração de riqueza nunca foi tão aberrantemente desigual e exposta, e em que a violência imperialista dos EUA nunca foi tão flagrante, ao mesmo tempo que a garantia da sua hegemonia geopolítica e económica parece estar sob "ameaça", talvez as elites liberais e seus patrocinadores precisem de atualizar os seus instrumentos de dominação ideológica. 

Tudo isto convive com o ressurgimento da normalização do fascismo "all over", intensificação da repressão policial e de discursos militaristas que se servem da xenofobia e da aporofobia para implementar políticas obscenas anti-imigração, empurrar mais pessoas para a miséria e dividir a classe trabalhadora (para não mencionar a crise climática que obviamente está entrelaçada com todas estas). As ditas elites liberais, em Hollywood e não só, tentam posicionar-se contra este processo de refascização mas, no fundo, estão unidas com os seus arautos numa série de interesses comuns, desde logo, a manutenção do sistema de exploração capitalista que lhes garante a concentração de poder, riqueza e influência. Desviar o discurso da representatividade sobre "identity politics" para "real working people" é uma forma inteligente de fazer coopt da luta de classes neste momento. Não é nada de novo, mas pode funcionar como uma útil reciclagem do "american dream" num momento de polarização extrema entre o discurso reacionário "anti-wokismo" e uma consciencialização coletiva anticapitalista potencialmente "perigosa" para o status quo.


Voltando a Sean Baker e ao Anora, embora possam ser "peões" neste jogo, acho mesmo que merecem ser reconhecidos de uma perspetiva de resistência contra essa apropriação. E acho que isso pode passar também por uma contextualização do Anora na filmografia do Sean Baker, e na compreensão do lugar de onde ele parte para construir os seus filmes. Não quer isto dizer que o Anora não possa ser lido por si só, como objeto único que é, mas a pressa com que vejo pessoas a desvalorizar este filme é reveladora de um profundo desconhecimento daquilo que tem sido um trabalho consciente e consistente em busca de uma representatividade justa e densa de realidades que, ora escapam à produção mainstream, ora são representadas de uma forma estereotipada, unidimensional e paternalista.

A escritora e podcaster Broey Deschanel fez um vídeo-ensaio sobre o Anora de que gostei e com o qual me identifiquei muito, que faz um excelente enquadramento do filme no contexto da obra do Sean Baker, e uma leitura crítica sobre a interseção entre a consciência de classe, o afeto e o fator emancipatório da fantasia nos seus vários filmes, como o Tangerine (2015) ou o Florida Project (2017) — e o Anora não é exceção. Este é apenas um dos vários filmes dele em que a personagem principal é uma trabalhadora sexual e a recorrência da temática na filmografia do Sean Baker tem sido sedimentada por um engagement com comunidades de trabalhadoras sexuais reais, algumas das quais trabalharam como consultoras e atrizes no Anora. Mulheres historicamente estigmatizadas, desprezadas e vítimas de várias violências sistémicas são encarnadas, nos filmes de Baker, por personagens emocionalmente complexas que dispensam uma empatia condescendente, ao mesmo tempo que desafiam as narrativas igualmente estereotípicas da "prostituta girl boss" ou da pura vítima traumatizada.

As reações díspares que o filme tem tido por parte de diversas trabalhadoras sexuais são interessantes e devem ser tidas em conta na perceção de que não estamos a falar de um grupo de pessoas monolítico. O facto de estar a haver uma discussão séria e engajada em torno do filme que inclui as perspetivas e as críticas destas pessoas parece-me ser um sinal a favor da sua importância e relevância. Mas acho que uma das grandes forças deste filme reside também na possibilidade de identificação com a personagem principal que excede, sem diluir ou menosprezar, o fator da sua profissão, levando-nos a encontrar uma pessoa inteira, cuja interioridade se vai adensando à medida que o filme avança. Para isso, não é preciso sabermos todos os detalhes biográficos da vida de Anora, ou Ani, bastando-nos o que foi condensado no seu corpo, gestos, ações e interações ao longo do filme. Um trabalho de escrita de personagem extraordinário, a que a performance de Mikey Madison deu vida com uma entrega brutal.

Já agora, sim, adorei a Mikey Madison no papel!, e apesar de não duvidar que a Fernanda Torres deve estar incrível no Ainda Estou Aqui (ainda não vi mas ela é, de facto, amazing), não estou mesmo a compreender o hate e, muito menos, os argumentos a favor do maior merecimento da Demi Moore pelo seu papel no The Substance. Nada contra a Demi Moore mas, para além de o filme ser horrendo (por todos os motivos e mais alguns — a Deschanel tem um outro vídeo-ensaio muito bom sobre como este "filme sobre idadismo" é, na realidade, um filme profundamente idadista —, o desfavor que lhe fizeram com a personagem mais flat e desinteressante de sempre é de uma misoginia tal que custa a acreditar que o filme tenha sido escrito por uma mulher (parece ser esse um dos principais argumentos em defesa do filme, aliás, só que não....).

Tal como aconteceu a Deschanel, o momento em que me rendi por completo ao Anora foi o seu final. Não vou spoilar mas o final do Anora ressoou no meu corpo de uma maneira inegável, deixando-me sem palavras na sala de cinema, no melhor sentido dessa sensação ambivalente e rara, espelho daqueles momentos em que, perante tudo o que desaba, uma lucidez ancorada no corpo se instala, um momento de enraizamento que tem tanto de desconcertante quanto de reassuring. Também por isso tenho dificuldade em concordar com a avaliação da Equitable Care Signification (que criou uma espécie de Bechdel Test para ajuizar a representação do trabalho sexual em filmes) quando assume que o Anora "não tem um final feliz ou não-traumático para a trabalhadora sexual". Não querendo pôr em causa a legitimidade desta avaliação, voltamos à questão da perspetiva... Perante uma realidade em que a nossa capacidade produtiva de sobrevivência no sistema capitalista nos obriga a habitar estados de constante dissociação emocional e afetiva, li o final do Anora como um momento de descarga emocional e corporal emancipatória que permite à personagem entrar em contacto consigo mesma de uma forma que, não só não é traumática, como parece ir ao encontro de algo que está no cerne dos processos terapêuticos quando lidamos com trauma. Permitir que as emoções percorram o nosso corpo, permitir ao nosso corpo manifestar essas emoções.

Para mim, uma das grandes forças do Anora está justamente naquilo que não é apropriável de um ponto de vista psicossomático, sempre coletivamente implicado, e no modo como revela o entrelaçamento relacional, e em constante negociação, entre os contornos de um corpo, o contexto material em que se move, as interações que tem com os outros corpos e a forma como é percecionado, catalogado, e valorizado (de fora e por dentro). Algo que o "sonho americano" precisa de descartar para vender a sua narrativa de self-made-people e self-made-bodies e as suas falsas promessas de "agência e liberdade" individualistas. O take da Deschanel conclui justamente com a ideia de que "Ani se atreve a sonhar". Mas o sonho de Ani é outra coisa, ou é, pelo menos, um sonho que leva a um sítio diferente da ideia de chegar ao topo que o "sonho americano" promete. Um sítio onde ela chega ao fundo, se encontra e nos encontra, inapropriável mas profundamente partilhável, na sua dimensão mais íntima.

Acabo com uma citação da Atena Athanasiou que diz: "(...) freedom is precisely what throws the subject into the space of the sharing of being. Freedom is the specific logic of the access to the self outside of itself" (Agonistic Mourning, 2017). É isto que Anora, e Ani, também nos dão.