I.
É meia-noite no Largo do Carmo à pinha, e cantamos a Grândola. Os carros continuam a passar pelo meio do mar de corpos que enche a pequenina praça. É mesmo pequena. E os carros passam, e a multidão abre caminho para que eles passem, à razia. Um polícia sinaleiro interpela um condutor: “continue, continue, se tocar em alguém, olhe, azar, ninguém respeita”. Ninguém respeita os carros, e ainda bem que há polícias a defendê-los. A multidão entoa “o povo, unido, jamais será vencido!”. Este ano, não sou capaz de juntar a minha voz a esse coro. Quem é “o povo”?
São duas e tal da manhã. Eu e três amigos falamos sobre consentimento numa esplanada junto ao Largo. Felizmente, são homens que sabem respeitar os sinais do corpo alheio, e que acham nojento sentir prazer numa violação. Mas o consentimento tem muito mais que se lhe diga, para além do que acontece nas situações óbvias, e nas interações corpo-a-corpo, em que o corpo é realmente capaz de manifestar, mais ou menos explicitamente, que há certas coisas que não quer fazer ou que lhe façam. O modo como tratamos o nosso corpo no capitalismo é o maior exemplo de uma relação onde, constantemente, quebramos a integridade que o consentimento nos deve garantir. Estamos sempre a agir contra o corpo, as suas vontades e desejos, as suas necessidades e apelos, num registo quotidiano, contínuo. Todos os dias nos deixamos violar pelas mais opressivas expressões do poder, nas suas várias camadas muito concretas, mas nem sempre específicas ou absolutamente nítidas. O capitalismo serve-se delas tanto quanto as reafirma e perpetua, penetrando em todas as relações que temos, connosco, com os outros e todas as coisas, numa lógica de co-existência que depende da violação para se manter. Que depende de uma continuada negligência dos corpos, os nossos e os dos outros, humanos e não humanos. Talvez seja preciso começar a falar de consentimento com muito mais nuance, não no sentido de desresponsabilizar ninguém, mas no sentido de entender que o que está em causa ultrapassa a mera divisão entre abusadores e abusadas. Sobretudo porque, ao encarar a questão de uma perspetiva sistémica, rapidamente constatamos que não há soluções rápidas, imediatas ou individuais para lidar com este tipo de violência.
E mesmo para quem fala com tantas certezas de nunca ter coagido ninguém a fazer algo que não queria, ou a deixar-se estar numa situação indesejável... Podemos realmente garantir que a pessoa com quem estamos a interagir está a consentir essa interação, se não for capaz de escutar o seu corpo? Podemos realmente confiar em nós mesmas para consentir o que quer que seja enquanto continuamos a rejeitar escutá-lo?
São 4:18 da manhã. Estou na minha cozinha a comer torradas e a beber chá, vinda da rua com um cravo na mão. Ando a fazer noitadas há uma semana e meia, estou com o horário da madrugada. Ontem, dia 24 de abril, acabei, finalmente, a tese. Esta tese de que me ouvem falar há meses (anos…), enquanto dizem “acaba lá isso!”, “é só uma tese!” — acreditem, eu sei. Mas também sei, como me disseram há tempos, que uma tese não se acaba, abandona-se.
E calma, ainda só estou na primeira fase. Ontem, escrevi a última frase. E é isso que celebro, por enquanto (ainda falta rever, submeter, defender…). É difícil de explicar esta sensação de escrever a última frase de um enorme texto que tem ocupado tanto mas tanto espaço na minha vida. Não é, como talvez possa parecer a algumas pessoas (e como eu própria, por vezes, senti), um mero empecilho no caminho que me impede de continuar a andar, ou uma tarefa que deveria ter sido cumprida há muito tempo — e este pensamento assombrou-me em vários momentos. “Isso é perfeccionismo”, “já tá bom de certeza”. Tudo bem, eu aceito que sejam aquelas coisas que se dizem, as coisas que se costumam dizer, e a melhor resposta possível aos meus disparatados momentos de desespero, angústia e incertezas, em que procurei um ombro amigo que me consolasse. Em certos momentos, apanhei-me a dizê-las a mim própria — “só quero acabar isto!” — e até escrevi, nos azulejos do meu chuveiro, “vou acabar a tese”, para me convencer de algo que parecia ser óbvio para toda a gente menos para mim. Engraçado que, perante a notícia de que acabei, tenha sido tão comum perguntarem-me “e agora?”, “e a seguir?”. Calma. Lá porque eu queria, de facto, acabar isto, não significa que esteja já pronta para passar para outra. Eu tenho noção de que isto é um sinal de privilégio (nunca o negarei), e também é esse o problema. Quem é que tem tempo para ter calma, respirar fundo entre as suas passadas, sem a ânsia da próxima senda? O pior é que, quem tem, também reproduz a mesma pressa — acima de tudo, a produtividade! Para essas, o descanso não é revolucionário, mas fonte de culpa constante.
São cinco da manhã. Não consigo não achar simbólico que o dia em que acabo de escrever a tese seja o dia 24 de abril. Mas este ano não é como os outros. Alguma coisa mudou. E é até mais por isso que é simbólico, do que pela data em si, ainda que a data ajude a reforçá-lo. Em 1974, muitas coisas mudaram, mas não foi da noite para o dia, e o fragmento celebrável daquilo que marca o fim de uma ditadura dificulta a consciência deste facto. O 25 de Abril, enquanto unidade de tempo diária, teve de alargar muito para que coubesse tudo aquilo que nele se veio a incluir. Porém, no mesmo gesto, fica de fora a consciência de um processo e de um movimento, reduzidos a uma historicização do “clímax” (o sexo masculino é, de facto, a medida para todas as coisas deste mundo). Como qualquer dia significativo na construção da narrativa histórica de uma nação colonial onde a lei burguesa impera, é claro que esta data teve de ser (e continua a ser) institucionalmente branqueada.
São dez da manhã. Assim que acordo percebo que mal me consigo mexer, quanto mais sair da cama. Dói-me o corpo todo, a garganta, a barriga, os braços, as costas. É como se o meu corpo me dissesse: “eu aguentei estes dias todos, agora é a minha vez”. O problema de ir treinando a escuta do nosso corpo é que deixamos de o conseguir ignorar, ele começa a falar bem alto. Mas é sempre uma negociação… O corpo aguenta muito, de facto, há que lhe dar esse crédito. A sobrevivência, no capitalismo, exige-nos que quebremos o nosso voto de confiança no corpo, entre muitas outras coisas.
Por muito mal que me sinta, tenho de admitir que esta é uma reação psicossomática muito legítima ao esforço e à ansiedade dos últimos tempos, em particular nesta última semana; uma descarga necessária de toda a energia que dediquei a “acabar” este pequeno monumento de quase 200 páginas, fora todas aquelas que descartei. Mas também uma espécie de luto, que espreita na ambiguidade do alívio, e que começa a bater. Eu sei, sempre a insistir na tecla do luto, mas estou há anos a pensar e a escrever sobre ele, deixem-me continuar, só mais um bocadinho.
Duas e um quarto, já percebi que este ano não desço a Avenida. Depois de dormitar mais um bocado, consegui levantar-me, mas estou de rastos. De novo na cozinha, faço outro chá, pode ser que entretanto isto melhore. Mas mais uma vez confesso, este ano sinto uma ambivalência estranha, uma vontade de sair à rua noutra direção, uma dissonância. Aparentemente, foi uma surpresa para muita gente que o nosso governo de direita tenha cancelado a sua participação nas celebrações do 25 de Abril a propósito do luto nacional declarado pela morte do Papa. As pessoas, claro, indignam-se, e saem à rua na mesma, como deve ser. Mas apressam-se, a meu ver, a dizer “mais luta, menos luto”, perdendo a oportunidade de se envolverem num discurso crítico sobre os mecanismos através dos quais o luto também é constantemente politizado, instrumentalizado para fins políticos. Quem tem e quem não tem direito a ser passível de enlutamento nacional? A incompatibilidade entre luto e celebração é reforçada por ambas as partes. Para mim, e sei que para muitas outras pessoas que se recusam a celebrar Abril sem uma certa dose de desconfiança perante as narrativas conciliatórias das “conquistas democráticas” e o mito da “revolução sem sangue”, o luto não tem como não acompanhar estes festejos. No branqueamento de Abril, passa-se pano justamente nos lugares para os quais teríamos de olhar, e que entram em conflito com a historieta do “dia inicial e limpo”. Em África. O 25 de Abril começou em África.
É preciso perceber que este “povo unido” também não está todo a celebrar a mesma coisa. E que exaltar isso como uma das mais bonitas características das celebrações de Abril, em que diferentes classes e fações do espectro político se juntam numa só grande marcha, é a mais irónica constatação de uma revolução falhada. É que Abril de 74 não marca apenas o derrube de uma ditadura e de uma guerra colonial que se deram, não graças a uma cedência do poder, mas a quem o tomou e o obrigou a ceder. E que não haja dúvidas de que esses sejam motivos suficientes para celebrar esta data, e tudo o que trouxe. Mas Abril, é preciso relembrá-lo, sinaliza o início de um processo revolucionário que imaginou um futuro que não se cumpriu. Dizer que esta democracia foi a grande conquista de Abril é contar a história na pele do vencedor, purgando-a daquilo que poderia ter sido muito mais. A democracia que temos hoje é consequência de uma vitória, não da revolução, mas da classe burguesa que conseguiu esmagá-la, e a quem devemos estar sempre gratas pelos nossos direitos democráticos. Abril para todos? Quais todos? Se começássemos a enumerar toda a gente que fica de fora desse “todos”, torna-se difícil continuar a cantar certas lenga lengas sem um nó na garganta. E a quem está ciente disso, convém que não nos enganemos a constatar que até aqueles que apelam a que Abril se cumpra também tiveram um papel fundamental nessa derrota.
São quase cinco e meia da tarde. Estive a ouvir a mix da Rádio Sonoplasmática do Doutor Urânio, edição especial do 25 de Abril. Continuo a sentir-me um pouco estranha mas começo a pensar em sair de casa. Talvez vá à cena do Vida Justa na Voz do Operário, o meu amigo D. diz que Abril está lá, e também é lá que muitos dos meus amigos vão. Visto-me toda de preto com o cachecol vermelho e o cravo, já um pouco murcho, na alça da mala. Ontem, ao Largo do Carmo, levei o vestido da minha mãe, que ela usou no funeral do meu pai, que eu usei no funeral da minha avó, e que agora está comigo. É um vestido comprido, preto com pintinhas brancas, num tecido fino e leve. Quando eu cresci, este vestido tinha um peso muito grande, e estava sempre pendurado no armário. Agora ocorre-me que ele possa ser um vestido-para-todos-os-lutos, dos mais pequenos aos maiores, uma espécie de vestimenta celebratória de diferentes tipos de fim. É que o luto, com todo o seu peso, faz sempre parte de qualquer rito de passagem, cumprimento de uma etapa que fecha alguma coisa a que nos dedicámos e nos é importante, e nos permite continuar. Acima de tudo, talvez mais ainda do que marcar a morte, o luto celebra a vida e a transformação.
Com a sua demanda de ressignificação, o luto é uma força que nos obriga à revisão da história na perspetiva das suas perdas, e na abertura das suas brechas, e, ao mesmo tempo, o seu veículo e suporte instável, com todas as suas aporias, incertezas e turbulências. Falo de um luto que se impõe sem nostalgia, na medida em que a nostalgia talvez seja uma espécie de rasteira ao luto, o travão incapacitante da sua engrenagem. Numa cultura da nostalgia, o passado fica cristalizado, e assim também aquilo que, no presente, nos permite reenquadrá-lo, abri-lo à disputa de uma reconfiguração que imagina o futuro. Um futuro onde porventura deixamos de consentir que nos explorem e imobilizem, e em que precisamos, mais do que nunca, de nos implicar no resgate das coisas abandonadas, renegadas, violadas, interrompidas. Será também esse o gesto revelador de muitas coisas que não chegámos a enterrar.
Assim como a luta, o luto também é um trabalho constante e contínuo, exigido no tratamento de qualquer falha enquanto marca do que poderá estar a faltar; um trabalho que reformula o que falta fazer num interminável ir-fazendo. Que recusa, não apenas a contenção da revolução aos limites de uma data, como o seu constante re-adiamento.
Seis e meia em direção à Graça.
Abril pode ser agora, Abril tem de ser sempre.
quando essa pessoa nos aparece à frente
e nos devolve o desejo
através dos seus usos
sempre que nos gabamos de uma palavra intraduzível?
