20 maio 2025

# umas fagulhas



a forma como falas das coisas

inscreve-se materialmente

na sua forma

e consequentemente

nos seus efeitos

no seu alcance

e no seu poder de transformar


aquilo que dizes 

não se desprende do modo como o dizes

nem da voz que o molda e se projeta para fora

estás a falar de onde e para quem?

perguntas que nos esquecemos de fazer antes de abrir a boca e jorrar a tinta


esta língua não é nossa

falar é sempre citar

mas a citacionalidade é uma

espada de dois bicos

experimenta rastrear o uso das palavras que usas

enquanto descobres os outros usos que elas já prometem na possibilidade de, com elas, assaltar a própria linguagem


não há premissa ou proposição que nos valham no vácuo

daí a importância da ancoragem

a necessidade do sistema e dos códigos

a percepção de que o poder se disputa

e de que não há registo de quem tenha abdicado dele porque sim


ainda podemos confiar no diagnóstico marxista;

a camada de pó que vês é meticulosamente acumulada pela força do poder que não cede, até que tape por completo o vislumbre da revolução

a consequência de algo que se adia, a cada cedência no movimento da oposição – o destino da classe explorada num sistema de acumulação de Capital


o clichê de relembrar que radical vem de raíz: 

não te parece estranho continuar a defender os instrumentos que gerem este modo de organização social ao mesmo tempo que te surpreendes com quem cavalga essas estruturas com o pretexto de as destruir enquanto mantém intactas as relações de poder – agravando ainda mais o fosso?


das duas uma: 

defender as estruturas e as instituições da classe dominante – a Lei, a polícia, o parlamento – independentemente de quem se apropria delas (ou seja, deixar a democracia burguesa funcionar) ou, talvez, numa jogada um pouco mais comprometida com a “mudança”, se for essa que se almeja, fazer de tudo para as desmantelar – isto só pega na difusão da admissão do seu desgaste, gerando a inevitabilidade das alternativas reais


admitindo até que é possível falar bem da “estabilidade” como conceito abstrato…. para que o poder burguês se mantenha estável, mascara-se a violência que o permite

toda a instabilidade que a sustenta, e calcifica o ressentimento

a corda vai-se gastando, na ilusão do compromisso, nas táticas de burocratização das “lutas”


haja coragem para reivindicar a violência contra o poder burguês, contra o patriotismo vestido de colonialismo do bem, contra a social-democracia que se nos impõe como o máximo horizonte almejável com o seu cenário pintado

queremos enfrentar nazis antes de desnazificar o nosso próprio discurso, a nossa própria bolha?


sem poder de decisão, 

existe ainda agência para aprender a des-cindir,

– como diz a Fernanda Eugénio

a exclusão é um processo constitutivo do poder; e há mãos que é mesmo preciso largar


o projeto das democracias neoliberais ocidentais, assente como está no colonialismo, é uma muralha que fortalecemos quando não vemos que é logo aí que precisamos de partir pedra. 

sejamos nós a erva daninha a vingar sobre o bolor.


*


B Fachada em Enterrados no Jardim (2025)

Fernanda Eugénio e João Fiadeiro, "O Encontro é uma Ferida" (2012)

Maria Lis, Enclave (2024)